A Simplicidade Cristã

Maria, rainha dos escoceses, disse a João Knox: “A quem devo eu obedecer então, ao senhor ou ao Papa de Roma?”. Knox respondeu: “A nenhum, madame, a senhora deve obedecer a Deus à medida que ele fala em sua Palavra, pois o Espírito Santo nunca se contradiz”.

Se Maria, rainha dos escoceses, estivesse viva hoje, encontraria um número bem maior de postulantes a sua obediência do que João Knox e o Papa de Roma. O problema dela era relativamente simples. Hoje existem centenas de formas de confissões cristãs, e não nos surpreende o fato de que quem não tem o costume de levar sua fé a sério, não se importa muito no que acreditar ou que seita escolher. Quem é zeloso não aceita tamanho relaxamento. Os diretores de um negócio moderno, ao enfrentarem uma forte concorrência e mesmo os chefes de um partido político numa situação difícil, não imaginam que suas crenças, ações e alianças não têm grande importância. Eles vão vencer ou fracassar de acordo com o resultado destas decisões. Muito da “tolerância” religiosa hoje, surge não do amor cristão (que é tão falto como sempre foi), mas de uma suposição irreligiosa e que a vontade de Deus pouco importa em nosso destino.

A fim de podermos descobrir o caminho certo nas complexidades da situação atual, é útil olhar alguns esboços da história da Igreja. Durante o primeiro século, o culto cristão era muito simples. Não havia uma forma complicada de ritual. Os prédios estavam longe de serem aparatosos. Os líderes dos vários ajuntamentos eram escolhidos entre si, pelos apóstolos ou seus enviados, ou mais tarde pela Igreja em uma localidade. A palavra “bispo” simplesmente significava um membro mais dotado na pequena congregação a quem era confiado o exercício da liderança, sendo esta posição a mesma que a do ancião (presbítero). Se um irmão fosse dar todo seu tempo ao trabalho, seria sustentado por ofertas voluntárias. As únicas ordenanças eram a Ceia do Senhor e o Batismo dos crentes.

Em pouco tempo várias elaborações se desenvolveram. As opiniões sempre têm sido diferentes quanto ao fato destas mudanças, se são devidas ao desenvolvimento da mente do Senhor, ou, como cremos, tem a tendência de desfazer a Palavra de Deus por adotar acréscimos e tradições meramente humanas. Um ancião, ou bispo, começou a exercer todo o controle das reuniões, disciplina, serviço e doutrina da igreja. Foi “ordenado” por outros bispos na região e uma distinção manifestou-se entre clérigos e leigos, sendo estes últimos excluídos de ensinar e pregar. À medida que seus deveres se multiplicaram, os bispos começaram a receber um salário fixo, que naqueles dias antigos era pouca coisa. Depois, devido a uma má interpretação da Palavra do Senhor, o bispo que presidia reivindicou o poder de transformar literalmente o pão e o vinho no corpo e sangue de Cristo.

Durante os séculos de perseguição era considerado certo e natural que fosse dada grande honra à memória dos mártires. Com isso, lamentavelmente, eles foram gradativamente elevados à posição de semideuses e santos. Relíquias tornaram-se muito procuradas pelos seus supostos poderes milagrosos. O batismo de bebês foi introduzido no segundo ou terceiro século, mas não se tornou regra geral até o quarto ou quinto século.

Quando o poder do paganismo por fim foi derrubado, e a perseguição cedeu lugar à prosperidade, os males vieram numa torrente. A “igreja exterior” e visível fez toda a sorte de concessão a fim de cativar o povo, adotando festas pagãs e deuses pagãos, dando-lhes nomes cristãos. A estátua de Pedro em Roma originalmente era de Júpiter! Uma Vênus, ou uma Minerva, facilmente transformou-se na Virgem Maria. O que faltava em realidade espiritual no culto, tentava-se suprir com música, cerimônia e ostentação.

Não precisamos continuar a história miserável de uma sucessão de papas, às vezes assassinos, adúlteros e amantes de dinheiro que reivindicou infalibilidade papal, tirou a Bíblia das mãos do povo e fez com que a conformidade a uma “igreja”, que adora imagens, se tornasse a suprema prova de salvação.

Grandes, ousados e santos homens, tais como Savanarola, Wycliffe, Lutero e Tyndale revoltaram contra esse sistema perverso. Surgiram aí igrejas protestantes. Na Inglaterra o movimento se desenvolveu na Igreja Anglicana, ou Episcopal, embora desde os dias da rainha Elisabete I sempre houve os não-conformistas, os puritanos, antepassados daqueles que hoje se chamam congregacionais e batistas. Depois da indiferença religiosa dos séculos 17 e 18, quando os não-conformistas afundaram-se no unitarianismo (negando a divindade de Cristo) e a Igreja Anglicana no formalismo vazio, João e Carlos Wesley, Jorge Whitefield e outros lideraram um gracioso reavivamento de poder evangélico e disso resultaram as várias divisões do metodismo. Do metodismo desenvolveu-se o movimento pentecostal. Assim, hoje somos confrontados com dezenas de seitas.

Ora, se quisermos obter uma amostra de água pura do rio Amazonas, não devemos tirá-la abaixo de Macapá, nem mesmo perto de Manaus. Devemos ir além de onde a primeira habitação a contamine, na própria fonte, no Peru. Deve ser evidente que as igrejas romanas e gregas, em todas as aparências exteriores, as descendentes diretas dos apóstolos, eram cheias de corrupção. Assim, a única maneira para se obter um culto puro é voltar, não ao quarto século, e nem mesmo ao segundo século, mas à Igreja do Novo Testamento como nosso padrão. Se concluirmos que devemos rejeitar a maioria das ordenanças como acréscimos humanos, porque não sermos lógicos e rejeitar todas? Foi neste ponto que os Anglicanos e não-conformistas igualmente fracassaram. Ficaram contentes em cortar os abusos grosseiros, mas usaram seus próprios julgamentos sobre quantos acréscimos guardariam e quantos rejeitariam. O resultado só podia ser uma multidão de seitas. Algumas conservaram o sistema romano de governo eclesiástico e o culto litúrgico. Outras abandonaram ambos, mas conservaram a aspersão de bebês. Outras rejeitaram isso também, mas mantiveram um ministério ordenado para liderar o culto. Uma ou duas seitas foram a outro extremo e abandonaram todas as ordenanças, mesmo a Ceia do Senhor. Coube àqueles que são conhecidos como “irmãos” tomarem a posição lógica, a saber, de planejar o culto e o serviço cristão baseados tão exatamente quanto possível no modelo da igreja em o Novo Testamento e rejeitar não algumas das práticas que o raciocínio humano tinha acrescentado durante os séculos, mas todas elas.

Muitas vezes levanta-se a objeção de que não devemos chegar à conclusão de que os métodos da igreja primitiva destinavam-se a ser obrigatórios para sempre. Alguns têm comentado que foram instituídos, não por Cristo mesmo, mas pelos apóstolos, e mesmo no Novo Testamento, dizem, existe evidência de variação na prática.

Se por isso querem dizer que a ordem no Novo Testamento é uma instituição meramente humana, devemos protestar energicamente. Os apóstolos, como homens, certamente foram falíveis, mas a igreja modelo descrita nos Atos e nas Epístolas foi plantada sob a supervisão direta do Espírito Santo, o qual também dirigiu o que está registrado para nossa aprendizagem. Depois do primeiro século, a inspiração divina de escritores humanos, neste sentido, cessou. Todavia existe uma porcentagem de veracidade na afirmação de que os métodos e modos na igreja primitiva não são obrigatórios para todas as gerações sem nenhuma modificação em seus pormenores. Por exemplo, não conversamos em grego ou aramaico, e nem usamos roupas semelhantes as daquela época. Os lugares de reunir têm mobília melhor, usamos hinários impressos e não nos é necessário saudar uns aos outros com o ósculo que era então uma saudação perfeitamente natural. O ponto essencial é o seguinte: Quando não existe um significado espiritual evidente num costume primitivo, não precisamos fazer-nos ridículos em voltar a ele. Mas se existir uma significação espiritual deve ser considerado como parte da ordem divina, e como tal não deve ser deixado de lado por qualquer avaliação humana. Se o deixarmos ao lado, o senhor nos dirá, como disse aos escribas e fariseus: “Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens, invalidando a Palavra de Deus pela vossa própria tradição” (Mc 7.7, 13).

Alguém poderá dizer: “Então os costumes não devem ser mudados, mesmo em mil e novecentos anos?”. O que foi revelado pelo Divino Filho de Deus e entregue pela inspiração especial do Espírito Santo aos seus apóstolos não poderá ser melhorado pela sabedoria dos homens. A Lei que os fariseus invalidaram tinha mais de mil e quinhentos anos, mas Cristo não os desculpou por esta causa. As leis divinas não cessam com o tempo. A fé foi entregue “Uma vez por todas… aos santos” (Jd 3). Para citar João Knox novamente: “Deve obedecer a Deus à medida que Ele fala em Sua Palavra, pois o Espírito Santo nunca se contradiz”.

Quais os princípios apostólicos de fé e prática que devem ser reestabelecidos? Quais as pedras no altar quebrado que devem ser recolocadas? Algumas são questões de doutrina, outras de prática:

  1. Cremos na divindade do Senhor Jesus Cristo;
  2. Cremos na inspiração divina e autoridade da Bíblia;
  3. Cremos no Evangelho primitivo de vida eterna conseguida somente pela fé pessoal no Senhor Jesus Cristo e seu sacrifício em nosso lugar;
  4. Praticamos o batismo unicamente de crentes;
  5. Reunimo-nos ao redor do Senhor em Sua Ceia no primeiro dia da semana. Nesta reunião permitimos ministério aberto a qualquer irmão que é guiado pelo Espírito Santo. Almejamos grande simplicidade na forma da reunião;
  6. Não há um ministério ordenado, embora um número de irmãos dão todo seu tempo ao trabalho de pastorear, ensinar ou evangelizar, e são sustentados, na dependência do Senhor, por ofertas voluntárias. Não recebem salário fixo. Os líderes espirituais da igreja em uma localidade não são eleitos por voto, mas quando Deus manifestamente os equipa são reconhecidos por seus irmãos.
  7. Como a igreja apostólica recebemos à Ceia do Senhor todos os crentes que se apresentam “sãos” nos princípios fundamentais da fé e piedosos na vida. Não recebemos os que não se qualificam assim.

Devemos estar preparados para receber o escárnio de ser chamados farisaicos, por praticar literalmente o exemplo dos apóstolos em questões de arranjos e formas exteriores, mas não por falhar em segui-los em zelo evangélico, sacrifício próprio e caráter que se assemelha ao de Cristo. Se isso é a verdade ou não, só o tribunal de Cristo o declarará. Não professamos ser mais santos do que outros cristãos, mas reconhecemos alegremente que há muitos entre nós, bem como entre outros, que têm como alvo firmemente seguir os passos do Mestre, embora, às vezes, com pés vacilantes e tropeçantes.

Arthur Rendle-Short – Traduzido e adaptado por Jaime C. Jardine.

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