Afligidos Através de Várias Tentações

“Agora, por um pouco de tempo, sendo necessário, sois afligidos através de várias tentações” (I Pe 1.6)

Há semelhança entre as trevas e o entorpecimento, mas também existe profunda e essencial diferença. Trevas mentais em que com frequência recaem, segundo se observa, os que uma vez andaram à luz da face de Deus. Na verdade, quase todos os filhos de Deus a experimentam, em grau maior ou menor. E tão grande é a semelhança entre um e outro estado, que eles frequentemente se confundem, e somos capazes de dizer indiferentemente: “Tal pessoa está em trevas”, ou “tal pessoa está em aflição” – como se se tratasse de termos equivalentes, nenhum deles implicando em mais do que o outro implica. Mas estão longe, muito longe disto: Trevas são uma coisa; aflição é outra. Há diferença, sim, uma grande diferença entre a primeira e a última. E tal diferença é o que todos os filhos de Deus precisam exatamente conhecer; de outro modo, nada lhes será mais fácil do que o resvalar-se da tristeza para as trevas.

I. A espécie de pessoas que estão entorpecidas.

Tenciono mostrar, em primeiro lugar, que espécie de pessoas eram aquéias a quem o apóstolo dizia: “Vós estais em aflição”. E, primeiro, é fora de toda controvérsia que eram crentes ao tempo em que o apóstolo assim se dirigia a elas: porque assim ele expressamente o diz (versículo 5): “Vós que sois guardados pelo poder de Deus através da fé para a salvação”. Outra vez (versículo 7) ele menciona: “a prova de sua fé, muito mais preciosa do que o ouro que perece”. E ainda outra vez o escritor fala de terem elas “recebido o fim de sua fé, a salvação de Suas almas”. Ao mesmo tempo, pois, que essas pessoas estavam “em aflição”, estavam de posse de viva fé. Sua aflição não lhes destruiu a fé; “ainda permanecem como vendo o Invisível”.

Nem sua aflição lhes destruiu a paz, a “paz que excede a toda compreensão”, que é inseparável da verdadeira, viva fé. Isto podemos facilmente respigar do segundo versículo” onde o apóstolo ora, não por que a graça e a paz lhes sejam dadas, mas somente por que elas possam “ser multiplicadas” neles; ora por que as bênçãos de que antes gozavam lhes fossem mais abundantemente comunicadas.

As pessoas a quem o apóstolo aí fala estavam também cheias de viva esperança. Porque assim diz Ele (versículo 3): “Bem-aventurado seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo sua abundante misericórdia, outra vez nos gerou” – a mim e a vós, a quantos somos “santificados pela Espírito”, e gozamos da “aspersão do sangue de Jesus Cristo” – “para uma viva esperança, para uma herança”, isto é, para uma viva esperança de uma herança “incorruptível, inabalável e que não murcha”. Assim, não obstante sua aflição, eles ainda mantêm na firme esperança da imortalidade.

E eles ainda se “regozijavam na esperança da glória de Deus”. Estavam cheios de alegria no Espírito Santo. Assim, (versículo 8), tendo o apóstolo mencionado a final “revelação de Jesus Cristo” (isto é, quando Ele vier a julgar o mundo), Imediatamente acrescenta: “em quem, embora agora não o vejais”, não vejais com os olhos corpóreos, “ainda credes, regozijando-vos com gozo indizível e cheio de glória”. Sua aflição, portanto, era não só consistente com a viva esperança, mas também com alegria indizível: ao mesmo tempo que estavam aflitos, regozijavam-se, não obstante, com alegria cheia de glória.

No meio de sua aflição, ainda igualmente desfrutam do ardor de Deus, que fora derramado em seus corações; “a quem” – diz o apóstolo – “não o tendo visto, vós amais”. Embora o não tenhamos visto face a face, todavia, conhecendo-o pela fé obedecemos à sua palavra: “Filho meu, dá-me teu coração”. Ele é vosso Deus, vosso amor, o desejo de vossos olhos e vossa “excessivamente grande recompensa”. Buscastes a felicidade e a encontrastes nele: vós vos “alegrastes no Senhor” e Ele vos deu “o desejo de vosso coração”.

Mais: embora fossem afligidos, ainda eram santos; conservavam o mesmo poder sobre o pecado. Eram ainda “guardados” do pecado “pelo poder de Deus”; eram “filhos obedientes, não conformados com seus primitivos desejos”, mas, “como Aquele que os chamou é santo”, assim eles eram “santos em toda maneira de conversação”. Sabendo que foram “redimidos pelo precioso sangue de Cristo, como de um Cordeiro sem defeito e imaculado”, têm, através da fé e da esperança depositadas em Deus, “purificado suas almas pelo Espírito”. Assim é que, em conjunto, sua aflição é bem consistente com a fé, com a esperança, com o amor de Deus e do homem, com a paz de Deus, com a alegria no Espírito Santo, com a santidade interior e exterior. A aflição de modo nenhum enfraquece e muito menos destrói qualquer parte da obra de Deus no coração. Ela de modo nenhum entra em conflito com a “santificação do Espírito”, que é a raiz de toda a verdadeira obediência, nem com a felicidade, que deve necessariamente resultar da graça e da paz que reinam no coração.

II. A natureza de seu entorpecimento.

Daí podemos facilmente aprender a espécie de aflição em que eles se encontravam – o que vem a ser a segunda coisa que tenciono mostrar. A palavra é, no original, luphqentev – – torna aflitos, atormentado; vem de luph– tormento ou aflição. Esta é a constante, literal significação da palavra: e feito este reparo, não há ambiguidade na expressão, nem qualquer dificuldade na compreensão dela. As pessoas de quem aí se fala eram atormentadas: a aflição em que se encontravam era nem mais, nem menos do que pesar ou tristeza; uma paixão com que todo filho do homem está bem familiarizado.

É provável que nossos tradutores representassem a ideia como aflição – heaviness (embora sendo palavra menos comum) para denotar duas coisas: primeiro, o grau; e, segundo, a continuação dela. Parece, na verdade, que não é um fraco ou insignificante grau de aflição o de que ai se trata, mas de aflição que produz forte impressão sobre a alma e penetra-a fundamente. Nem parece ser uma aflição passageira, que acabe numa hora, mas, antes, uma provação que, tendo-se assenhoreado do coração, não se abala no presente, mas continua por algum tempo, como uma disposição firmada, antes do que como uma paixão, manifestando-se naqueles que têm viva fé em Cristo e têm o genuíno amor de Deus em seu coração.

Mesmo nesses tais a aflição (pode algumas vezes ser tão profunda, que obscurece toda a alma; que tinge, por assim dizer, todas as afeições, de modo a transparecer de todo o seu exterior. Pode do mesmo modo ter influência sobre o corpo principalmente naqueles que são de constituição natural débil, ou se encontram enfraquecidos por qualquer desordem acidental especialmente de fundo nervoso. Em muitos casos verificamos que “o corpo corruptível faz pressão sobre a alma”: neste caso é antes a alma que faz pressão sobre o corpo, debilitando-o cada vez mais. Não direi, ademais, que aquela profunda e duradoura tristeza de coração não possa algumas vezes abalar mesmo uma constituição forte, e lançar os fundamentos de distúrbios físicos que não são fáceis de remover: e ainda tudo isso pode ser consistente com certa dose daquela fé que opera por amor.

Esta bem pode ser chamada de “ardente provação”: e, embora não seja a mesma de que faia o apóstolo no quarto capítulo, muitas das expressões aqui usadas, concernentes aos sofrimentos externos, podem ser acomodadas a esta aflição interior. Elas não podem, na verdade, ser aplicadas, com qualquer propriedade, aos que estão em trevas. Estes não se regozijam, em podem regozijar-se; nem é verdade que “o Espírito de gloria de Deus descanse sobre” eles. Mas Deus frequentemente o faz em relação aos que estão aflitos, de modo que, embora tristes, eles, contudo, sempre se regozijam.

III. As causas desse entorpecimento.

Mas, para passarmos ao terceiro ponto: quais são as causas de tal tristeza ou aflição no verdadeiro crente – o apóstolo claramente nos declara: “Vós estais em aflição” – diz ele “através de várias tentações”; poikiloiv– várias tentações: não somente muitas em número, mas de muitas espécies. Podem ser variadas e diversificadas de mil modos, pela mudança ou adição de circunstâncias inumeráveis. E a própria diversidade ou variedade faz que seja mais difícil que o homem se livre delas. Entre elas podemos arrolar todos os distúrbios físicos, principalmente as doenças agudas e as dores violentas de qualquer espécie, quer afetem todo o corpo, quer atinjam somente uma parte menor do organismo. É verdade que alguns, que têm desfrutado de inalterável saúde, e que não experimentaram nenhum daqueles males, podem fazer pouco caso dessas dores e admirar-se de que a doença, ou o sofrimento físico, possam trazer aflição ao espírito. E talvez haja um em mil de constituição tal, que não sinta dores como os demais homens. Assim há de ter sido do agrado de Deus mostrar seu poder soberano, produzindo alguns desses prodígios da natureza, que coisa alguma sentiram em referência às dores, mesmo da espécie mais severa – se não é que o conceito de dor proceda parcialmente da força da educação, parcialmente de uma causa preternatural – ao poder de espíritos bons ou maus, que teriam erguido aqueles homens acima do estado de mera natureza. Mas, abstração feita daqueles casos especiais, é, em geral, uma justa observação que “A dor é perfeita miséria; e, sendo extrema, Inteiramente aniquila toda a paciência”. E mesmo quando tal condição é prevenida pela graça de. Deus, de modo que os homens “possuam suas almas em paciência”, pode a dor, não obstante, ocasionar aflição interior, simpatizando a alma com o corpo.

Todas as doenças de longa duração, embora menos aflitivas, são capazes de produzir os mesmos resultados. Quando Deus faz recair sobre nós o esgotamento, ou os acessos intermitentes da frialdade e do ardor da febre, se esse mal não for rapidamente debelado, ele não só “consumirá os olhos”, mas “trará tristeza ao coração”. Este é eminentemente o caso de todas as chamadas desordens nervosas. A fé não transtorna a ordem da natureza: as causas naturais produzem efeitos naturais. A fé não pode suprimir odesmaio dos espíritos (como é chamado) num mal histérico, nem levantar o pulso num caso de febre.

Mais: quando a “calamidade sobrevém como um tufão e a pobreza como um homem armado”, constitui isto pequena tentação? É de estranhar que determine tristeza e aflição? Embora ainda isto não pareça senão coisa de somenos aos que ficam à distância, ou que “olham e passam de largo”, todavia o caso é diferente em relação aos que o sentem. “Tendo alimento e vestuário” (na verdade, a última palavra – skepasmataimplica em habitação tanto quanto em vestuário), podemos, Se o amor de Deus estiver em nosso coração, “estar satisfeitos com isso”. Mas, que farão os que não têm nada dessas coisas? Que, por assim dizer, “têm a caverna como abrigo”? Que têm somente a terra para sobre ela se deitar e somente o firmamento para os cobrir? Que farão os que não têm uma habitação seca, agasalhada, e muito menos abrigo asseado que os aloje com sua família? Não, nem roupas para se cobrirem e para agasalharem aqueles a quem amam logo abaixo de si mesmos, de modo que se resguardem do frio, seja de dia, seja de noite? Rio-me da estulta exclamação pagã “Nil habet infelix paupertas durius in se, Quam quod ridiculos homines facit?” – Tem a pobreza alguma coisa de pior em si mesma do que isto: tornar os homens capazes de rir-se dela? Isto indica que esse poeta ocioso ia pelas estradas a falar de coisas que não sabia. A falta de alimento não é algum tanto pior do que aquilo? Deus qualificou como maldição do homem o fato de que este angariasse o alimento “com o suor de seu rosto”. Mas no presente muitos há neste pais cristão que labutam, trabalham e suam, e afinal não têm alimento, mas ao mesmo tempo mourejam com aflição e fome. Que coisa há de pior para alguém do que, após uma rude jornada de trabalho, regressar a um casebre pobre, frio, sujo, desconfortável, e ai não encontrar nem sequer o alimento necessário à reparação das energias gastas? Vós que levais na terra vida fácil, que, não sofreis falta de coisa alguma, a não ser de olhos para ver, ouvidos para ouvir e corações para sentir quão bondoso tem sido Deus para convosco – não é pior buscar o pão dia após dia, e nada encontrar? Talvez também buscar o alimento de cinco ou seis crianças gritando por aquilo que o pai não tem para dar? Não acontecesse que mão invisível o contivesse, logo não faria ele isto: “amaldiçoar a Deus e morrer”? Oh! Falta de pão! Falta de pão! Quem pode dizer o que significa isso, a não ser que tenha passado por semelhante falta? Admiro-me de que ela não produza mais do que aflição, mesmo nos que creem!

Talvez que, a seguir; possamos lembrar o amor e daqueles que se achavam unidos a nós e nos eram caros; de um pai carinhoso e não muito avançado no vale dos anos; de um filho amado, surdindo apenas na vida e enlaçando-a a nosso coração; de um amigo que nos era como a própria alma, e, abaixo da graça de Deus, a derradeira e melhor dádiva do céu. E um milhar de circunstancias pode exacerbar a dor. Talvez o filho, o amigo, morre sob nosso abraço! – talvez tivesse sido arrebatado quando não esperávamos por isso! vicejando, é ceifado à semelhança de uma flor! Em todos esses casos não somente podemos recair, mas necessariamente recaímos em aflição: é desígnio de Deus que tenhamos aflições em casos tais. Ele não quereria ter em nós toros de madeira ou blocos de pedra. Quer ter nossas afeições reguladas, mas não extintas. Portanto, “a natureza irreprimível pode verter uma lágrima”. Pode-se entristecer sem pecado.

E tristeza ainda mais profunda podemos experimentar em face dos que estão mortos, conquanto vivam; em razão da impiedade, ingratidão, apostasia daqueles que estavam unidos a nós pelos laços mais fortes. Quem pode expressar o que o amante das almas pode sentir por um amigo, por um irmão, morto para Deus? Por um marido, uma esposa, um pai, um filho que corra para o pecado como um cavalo para a batalha apressando-se, a despeito de todos os argumentos e persuasão: a consumar sua própria perdição. Essa angústia de espírito pode ser elevada a um grau inconcebível, pela consideração de que o que ora corre rumo à destruição, já uma vez correu bem no caminho da vida. O que ele fora no passado agora não lhe serve para coisa alguma, a não ser para tornar mais cortantes e afetivas nossas reflexões sobre seu estado presente.

Em todas essas circunstâncias, estejamos certos, nosso grande adversário não deixará de servir-se da oportunidade Ele, que está sempre “andando em redor, buscando a quem possa tragar”, usará então, coespecialidade, de todo seu poder, de toda sua habilidade, a ver se é bem sucedido no obter qualquer vantagem sobre a alma que já se acha abatida. Não deixará de atirar seus dardos inflamados, visando o ponto mais vulnerável e dai fixando-se mais profundamente no coração, pela receptibilidade à tentação que o assalta. Trabalhará por inocular pensamentos de incredulidade, ou de blasfêmia, ou de murmuração. Insinuará que Deus não cuida da terra, não a governa; ou, pelo menos, que Ele a não governa bem, nem segundo os princípios da justiça e da misericórdia. Tentará excitar o coração contra Deus, tentará renovar nossa natural inimizade para com Deus. Se resolvermos dar-lhe combate com suas próprias armas, se começarmos a discutir com ele, resultar-nos-á aflição cada vez maior, senão mesmo treva profunda.

Frequentemente se supõe que haja outra causa, senão de trevas, pelo menos de aflição: – que Deus se oculte à alma. Em razão de ser essa a sua vontade soberana. Certamente que Ele faz isto, se ofendermos a seu Santo Espírito, seja por pecado exterior; seja por se fazer o mal ou por negligenciar a prática do bem; por dar lugar ao orgulho ou à ira, à indolência espiritual aos desejos insensatos ou às afeições desordenadas. Mas que Ele alguma vez se oculte porque queira, meramente por ser essa a sua vontade, nego-o com firmeza. Não há texto em toda a Bíblia que forneça qualquer apoio a tal suposição. Demais, tal suposição é contrária não Somente a muitos textos particulares, mas a todo o teor da Escritura. Repugna à própria natureza de Deus: rebaixa inteiramente sua majestade e sabedoria (como se expressa energicamente um escritor ilustre), “brincar de esconder com suas criaturas”. Tal conduta é inconsistente tanto com sua justiça como com sua misericórdia, assim como com a pura experiência de todos os filhos seus.

Mais outra causa de aflição é mencionada por muitos dos chamados “autores místicos” – e a ideia se insinuou, não sei como, mesmo entre o povo simples, que não tem contacto com tais autores. Não posso expor melhor a questão do que pelas palavras de uma escritora recente, que o relata como sua própria experiência: “Eu permanecia tão feliz em meu Bem-amado que, embora tivesse sido forçada a viver errante no deserto, nisto não teria encontrado dificuldade alguma. Este estado não havia durado muito quando, de fato, me vi levada ao deserto. Encontrei-me em triste condição, ao mesmo tempo pobre, iníqua e miserável. A própria fonte desse mal é o conhecimento de nós mesmos, pelo qual ficamos sabendo que há uma extrema dessemelhança entre Deus e nós; vemo-nos mais opostos a Ele e verificamos que nossa alma é, no íntimo, inteiramente corrupta, depravada e cheia de toda espécie de mal e malignidade, do mundo e da carne, e de todas as sortes de abominações”. Dai se tem inferido que o conhecimento de nós mesmos, sem o qual deveríamos perecer eternamente, deve, mesmo depois de termos alcançado a fé justificadora, determinar a mais profunda aflição.

Sobre isto, entretanto, observarei: (1) – No parágrafo precedente, essa escritora diz: “Verificando que não tenho verdadeira fé em Cristo, ofereço-me a Deus, e imediatamente sinto seu amor”. Pode ser que seja assim; todavia, não parece que isso seja justificação. É mais provável que não fosse mais do que o que comumente se chama a “atração do Pai”. E se assim for, a aflição e as trevas que se seguem não são outra coisa senão convicção de pecado, a qual, pela natureza das coisas, deve preceder àquela fé mediante a qual somos justificados. (2) – Supondo-se que ela fosse justificada quase no mesmo momento em que se convenceu de falta de fé, não haveria tempo para o gradual aumento do conhecimento próprio, que costuma vir antes da justificação: neste caso, portanto, viria depois e seria provavelmente tanto mais severo quanto menos se esperava por ele. (3) – Admite-se que haverá mais profundo, mais claro e mais completo conhecimento de nosso pecado congênito, de nossa inteira corrupção natural, depois da justificação, do que em qualquer época anterior. Mas isso não fornece necessária ocasião de trevas da alma; nem direi que ela deva conduzir-nos à aflição. Se assim fosse, o apóstolo não teria usado da expressão – se for necessário; porque haveria absoluta, indispensável, necessidade dela por parte de todos os que desejem conhecer-se a si mesmos, isto é, por parte de todos os que pretendam conhecer o perfeito amor de Deus e, por meio dele, tornarem-se “aptos à participação da herança dos santos em luz”. Mas este não é, de modo nenhum, o caso. Pelo contrário, Deus pode aumentar o conhecimento de nós mesmos em algum grau, e aumentar, na mesma proporção, o conhecimento do Senhor a experiência de seu amor. Neste caso não haverá “soledade”, nem “miséria”, nem “estado de abandono”; mas amor, e paz, e alegria, gradualmente saltando para a vida eterna.

IV. Os fins do entorpecimento.

Para que fim, então (o que vem a ser o quarto ponto a ser considerado), Deus permite que a aflição sobrevenha a tantos de seus filhos? O apóstolo nos dá clara e satisfatória resposta a esta importante questão: “Para que a prova de sua fé, que é muito mais preciosa do que o ouro que perece, o qual é provado pela fogo, possa resultar em louvor, honra e glória, à revelação de Jesus Cristo” (versículo 7). Pode haver alusão a isso na bem conhecida passagem do quarto capítulo (embora a passagem, primariamente, se relacione com outra coisa diversa, como já se observou): “não estranheis a ardente provação que há no meio de vós e que vem para vos pôr à. prova; mas regozijai-vos em serdes participantes dos sofrimentos de Cristo; para que, quando sua glória for revelada, possais igualmente exultar com alegria excessivamente grande” (versículos 12ss).

Dai aprendemos que o primeiro e grande fim que Deus tem em vista, permitindo as tentações que afligem a seus filhos, é a prova de sua fé que é experimentada por meio delas, assim como o ouro o é pelo fogo. Ora, sabemos que o ouro, submetido ao fogo, é por ele purificado, separando-se de suas escórias. Assim acontece com a fé exposta ao fogo da tentação: quanto mais é provada, mais se purifica; sim, e não somente se purifica, mas também se enrija, confirma-se, aumenta-se abundantemente, por outras tantas evidências de sabedoria e do poder, do amor e da fidelidade de Deus. Este, portanto, é um gracioso fim que Deus tem em vista, permitindo aquelas múltiplas tentações: aumentar-nos a fé.

Elas servem para provar, para purificar, para confirmar e também para aumentar aquela viva esperança, para a qual “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo nos gerou de novo por sua grande misericórdia”. Na verdade, nossa esperança não pode senão crescer segunda a mesma proporção de nossa fé. Sobre este fundamento ela repousa: crendo em seu Nome, vivendo pela fé no Filho de Deus, esperamos, temos uma confiante expectação da glória que se há de revelar e, consequentemente, tudo quanto nos fortalece a fé, aumenta-nos também a esperança. Ao mesmo tempo aumenta-se nossa alegria no Senhor, que não pode deixar de acompanhar a plena esperança da imortalidade. Com tal intenção o apóstolo exorta os crentes, em outro capítulo: “Regozijai-vos por serdes participantes dos sofrimentos de Cristo”. Exatamente por este motivo “sois felizes; porque o Espírito de glória e de Deus repousa sobre vós”: e por Ele sois habilitados, mesmo em meio de sofrimentos, a “regozijar-vos com alegria indizível e cheia de glória”.

Regozijam-se ainda mais, porque as provações que lhes aumentam a fé e a esperança, também lhes aumentam o amor – quer sua gratidão para com Deus, em face de todas as suas misericórdias, quer sua boa vontade para com toda a humanidade. Consequentemente, quanto mais sensíveis se mostram à compaixão de Deus seu Salvador, mais seu coração se inflama de amor para com o que “primeiro nos amou”. Quanto mais clara e mais forte for a evidência que tenham da glória que se há de revelar, maior amor terão Aquele que a adquiriu para eles e “tornou-a mais ardente em seus corações”. E isto: – o aumento de seu amor – é outro fim para o qual Deus permite venham sobre eles as tentações.

Ainda outro fim é o progresso na santidade; santidade de coração e santidade de conversação – naturalmente resultando a última da primeira, porque a árvore boa produz bons frutos. E toda a santidade interior é fruto imediato da fé que opera por amor. Pelo amor o bendito Espírito purifica o coração do orgulho, da obstinação, da paixão; do amor ao mundo, de desejos maus e insensatos; das afeições vis e profanas. Ao lado disso, as aflições santificadas têm, pela graça de Deus, uma tendência imediata e direta para a santidade. Através da operação de seu Espírito, eles se humilham cada vez mais e dobram a alma diante de Deus. Elas acalmam e pacificam nosso espírito insofrido, amansam o furor de nossa natureza, abrandam nossa obstinação e voluntariedade, crucificam- nos para o mundo e levam-nos a esperar de Deus toda nossa fortaleza e a buscar nele toda nossa felicidade.

E tudo isso termina naquele grande fim: para que nossa fé, esperança, amor e santidade “possam resultar”, se o não demonstram ainda, “em louvor” da parte do próprio Deus, “honra” da parte dos homens e dos anjos e “glória” comunicada pelo grande Juiz a todos Os que tenham perseverado até o fim. Isto será anunciado naquele dia tremendo a todo homem, “segundo suas obras”; segundo a obra” que Deus haja operado em seu coração e as obras exteriores que. o homem tenha feito para Deus; e do mesmo modo segundo o que tenha sofrido. Assim, todas essas provações são lucros inapreciáveis. Por muitos modos, aquelas “aflições, que duram só um momento, operam em nosso favor um mui excessivo e eterno peso de glória!”.

Adicionai a tudo isso a vantagem que outros podem tirar, contemplando-nos em nossas aflições. Verificamos pela experiência que o exemplo geralmente produz mais funda impressão sobre nós do que o preceito. E que exemplos têm mais forte influência, não somente sobre os que são participantes de igual fé preciosa, mas sobre os que não têm conhecimento de Deus, do que os de uma alma tranquila e serena em meio das tempestades; triste, e, contudo, regozijando-se sem cessar; aceitando humildemente o que quer que seja da vontade de Deus, por mais penoso que isso possa ser à natureza; dizendo, na enfermidade e na dor: “A taça que meu Pai me deu, não a beberei?” – dizendo, nos prejuízos e nas faltas: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou; bendito seja o nome do Senhor!”.

V. Lições.

Devo concluir com algumas inferências. E, primeiro, quão larga é a diferença entre trevas da alma e aflição; as quais, não obstante, tão geralmente são confundidas, mesmo por cristãos experimentados! As trevas – ou o estado de abandono implicam na perda total da alegria no Espírito Santo: a aflição não produz isto; em meio dela podemos “regozijar-nos com alegria indizível”. Os que estão em trevas perderam a paz de Deus; com os que se acham em aflição não acontece isto; pelo contrário, no próprio tempo da aflição a “paz”, assim como a “graça”, podem “multiplicar-se” neles. No primeiro caso o amor de Deus se resfria, se acaso não se extingue inteiramente; no segundo, o amor conserva toda sua força, ou, antes, aumenta-se diariamente. Nos que estão em trevas a própria fé, se não se perde totalmente, decai, todavia, gravemente: sua evidência e convicção das coisas não vistas, principalmente do amor perdoador de Deus, já não são tão claras ou tão fortes como no Passado, e sua confiança Dele proporcionalmente se abala; os aflitos, quer o vejam, quer não, têm ainda uma clara, inabalável confiança em Deus e uma constante evidência daquele amor mediante o qual todos os seus pecados são cancelados. Assim na medida que possamos distinguir a fé da incredulidade, a esperança do desespero, a paz da guerra, o amor de Deus do amor do mundo, podemos infalivelmente distinguir a aflição das trevas!

Dai podemos aprender, em segundo lugar, que pode haver necessidade de aflição, mas não pode haver necessidade de trevas. Pode ser necessário que estejamos em “aflição por algum tempo”, para os fins acima citados; pelo menos nesse sentido, como sendo o resultado daquelas “múltiplas tentações” que são necessárias para provar e aumentar nossa fé, para confirmar e aumentar nossa esperança, para purificar nosso coração de todas as inclinações ímpias e para aperfeiçoar-nos em amor. E, em consequência, elas são necessárias ao brilho de nossa coroa e ao aumento de nosso eterno peso de glória. Mas não podemos dizer que as trevas sejam necessárias à consecução de nenhum daqueles fins. Não são meios que conduzam a eles; a perda da fé, da esperança, do amor, certamente que não leva à santidade, nem ao aumento daquela recompensa no céu, que será proporcionada à nossa santidade na terra.

Do modo de falar do apóstolo podemos inferir, em terceiro lugar, que mesmo a aflição nem sempre é necessária. “Agora, por algum tempo, se for necessário”: assim, ela não é necessária a todas as pessoas, nem a uma pessoa em todos os tempos. Deus, que tanto possui poder como sabedoria, é capaz de operar em minha alma, por outros meios, a mesma obra, quando isso seja de seu agrado. E em alguns casos Ele faz assim; determina, segundo lhe agrade, que alguns cresçam de força em força, até que “aperfeiçoem a santidade em seu temor”, com pouca ou nenhuma aflição, tendo Deus absoluto poder sobre o coração do homem e movendo todas as fontes de energia segunda sua vontade. Esses casos são, porém, raros: Deus geralmente acha bom provar “os homens aceitáveis na fornalha da aflição”. Assim, aquelas múltiplas tentações e aflições são, em maior ou menor escala; a porção de seus filhos mais queridos.

Devemos, portanto, em último lugar, vigiar e orar, usando de nossos maiores esforços para evitar cairmos em trevas. Mas não temos necessidade de estar solícitos quanto ao modo de evitar, assim como quanto ao modo de aproveitar as aflições. Nosso grande cuidado deve ser o de termos tal conduta debaixo da aflição, que busquemos ao Senhor em meio dela, de modo que responda plenamente a todos os desígnios do amor de Deus, ao permitir que ela venha sobre nós; para que possa ser um meio de aumentar-nos a fé, de confirmar -nos a esperança e de aperfeiçoar-nos em toda a santidade. Todas as vezes que a aflição vier, tenhamos as vistas voltadas para os graciosos fins para que ela é permitida e usemos de toda diligência para que não tornemos vão o conselho de Deus contra nós mesmos. Cooperemos diligentemente com Ele, pela graça que constantemente nos concede, “purificando-nos a nós mesmos de toda contaminação, tanto da carne como do espírito” e crescendo diariamente na graça de nosso Senhor Jesus Cristo, até que sejamos recebidos em seu reino eterno!

John Wesley (1703-1791) nasceu em Epworth, na Inglaterra, no dia 17 de junho de 1703. Filho de um sacerdote anglicano foi o décimo quinto filho de uma família de dezenove irmãos. Estudou durante seis anos na escola de Charterhouse, em Londres. Em 1720 foi para a Christ Church College, em Oxford. Em 1726 foi eleito membro da Lincoln College. Foi ordenado diácono para o Ministério Anglicano, e passou a acompanhar seu pai na direção da Igreja Anglicana. Fundador do metodismo no século 18, o pastor da Igreja Anglicana lidou e ensinou sobre várias questões daquela época. John Wesley editou os sermões em dois momentos: logo depois do início da fase mais evangelista e da formação do movimento metodista, e mais tarde, a partir de 1778, no Arminian Magazine, revista editada por ele até o ano da sua morte, em 1791. As reflexões a respeito de Wesley e sua linha teológica tem sido motivo de várias pesquisas no país e no mundo. John Wesley faleceu em Londres, Inglaterra, no dia 02 de março de 1791.

Fonte: Igreja Metodista Portal Nacional, Sermão Nº 47.

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