O Senhor Nossa Justiça

“Este é o seu nome pelo qual ele será chamado: o Senhor nossa Justiça” (Jeremias 23.6).

Como são odiosas e como são numerosas as contendas levantadas acerca da religião! E não somente entre os filhos deste século, entre os que não conhecem o que seja a verdadeira religião, mas entre os filhos de Deus, entre os que experimentaram “o reino de Deus em meio deles“, entre os que provaram a “justiça, a paz e o gozo no Espírito Santo!“. Quantos desses, em todos os tempos, em lugar de se unirem contra o inimigo comum, voltaram suas armas uns contra outros, e assim não apenas dissiparam seu tempo precioso, mas feriram-se mutuamente no espírito, enfraquecendo-se uns e outros e destarte entravando a grande obra do Mestre comum! Quantas almas débeis se escandalizaram por essa causa! Quantos estropiados se desviaram do caminho! Quantos pecadores se afervoraram no desprezo de toda a religião e na aversão àqueles que professam! E quantos dos excelentes sobre a terra foram constrangidos a “prantear nos lugares secretos!“.

Que não deveria fazer todo amigo de Deus e do próximo, que não deveria sofrer, para remediar esse mal terrível, para remover a contenda dentre os filhos de Deus, para restaurar ou preservar a paz entre eles? A não ser uma boa consciência, que se poderia imaginar fosse demasiado precioso para sacrificar à consecução de tão precioso fim? Suposto que não possamos “fazer” que essas “guerras cessem em todo o mundo“; suposto que não possamos reconciliar todos os filhos de Deus uns com os outros, – faça, entretanto, cada um o que estiver a seu alcance; contribua, ainda que seja com os dois ceitis, para a realização desse objetivo. Felizes os que são capazes de, em qualquer medida, promover a “paz e a boa vontade entre os homens“, especialmente entre os homens bons, entre os que se alistaram sob a bandeira do “Príncipe da Paz” e estão, pois, particularmente interessados, “tanto quanto esteja neles“, em “viver em paz com todos os homens“!

Seria um passo considerável dado em direção a esse fim glorioso, se pudéssemos levar os homens generosos a um entendimento recíproco. Grande número de disputas se travam puramente por falta dessa compreensão, por mero mal-entendido. Frequentemente nenhuma das partes contendoras compreende o que quer dizer o oponente: daí resulta que cada qual ataca violentamente o adversário, embora entre eles não exista nenhuma diferença real. Todavia, não é empresa fácil convencê-los disso, especialmente quando suas paixões se aguçam: é com a maior dificuldade que eles então atendem. Não é, entretanto, impossível, principalmente se, ao empreendermos essa tarefa, o fizermos não confiando em nós mesmos, mas em tudo dependendo daquele a quem todas as coisas são possíveis. Assim é ele capaz de dissipar as nuvens e resplandecer em seus corações, habilitando-os a se compreenderem uns aos outros e a compreenderem “a verdade como se ache em Jesus“.

Um artigo importantíssimo dessa verdade se contém nas palavras acima citadas: “Este é o nome pelo qual ele será chamado: O SENHOR NOSSA JUSTIÇA“, verdade que penetra fundamente na natureza do cristianismo e, em certo sentido, lhe suporta toda a estrutura. Dela se pode dizer o que Lutero afirmava de outro postulado estreitamente relacionado com aquele: é articulus stantis vel cadentis ecclesiae: a igreja cristã permanece ou cai com ele. É seguramente o pilar e o fundamento daquela fé, da qual somente vem a salvação; daquela fé universal ou católica que se acha em todos os filhos de Deus e que, “a não ser que o homem a guarde íntegra e sem mancha, sem dúvida perecerá eternamente“.

Não pode alguém, pois, razoavelmente esperar que, conquanto discordem em outros assuntos, todos os que se chamam pelo nome de Cristo concordem neste ponto? Quão longe, entretanto, isto se acha da realidade! Dificilmente se encontra um ponto sobre que estejam menos concordes, uma vez que, professando todos seguirem a cristo, tão larga e irreconciliavelmente parece discordarem no modo de crer. Digo parece, porque estou profundamente convencido de que muitos deles apenas diferem em aparência. O desacordo consiste mais em palavras do que em sentimento: encontram-se muito mais unidos no conceito do que na linguagem. E enorme diferença de linguagem certamente existe, não somente entre protestantes, sim, mesmo entre todos os que aceitam a justificação pela fé e que estão em harmonia, tanto neste ponto como em todas as demais doutrinas basilares do Evangelho.

Mas, se a diferença for mais de opinião do que de real experiência, e mais de expressão do que de opinião, como pode acontecer, – por que hão de contender os filhos de Deus, tão veementemente, sobre tais questões? Diversas razões podem ser alvitradas: a principal é a não compreensão recíproca, unida ao apego demasiadamente obstinado às próprias opiniões e fórmulas especiais de expressão. Para remover tais dificuldades, ao menos em parte; para que nos entendamos uns com os outros num ponto capital, tentarei mostrar, com a graça de Deus:

I. O que é a justiça de Cristo;II. Quando, e em que sentido, ela nos é imputada.

Concluirei com uma curta e clara aplicação.

I – O que vem a ser a justiça de Cristo? É dupla, compreendendo sua justiça divina e sua justiça humana. Sua justiça divina pertence à sua natureza divina, como sendo Ele o ων,o que existe “sobre todos, Deus bendito para sempre“; o Supremo; o Eterno; “igual ao Pai no tocante à divindade, embora inferior a Ele no que se refere à humanidade“. Agora esta é sua eterna, essencial, imutável santidade; sua infinita justiça, misericórdia e verdade, sendo que em todas estas coisas Ele e o Pai são um.

A justiça humana de Cristo pertence à sua natureza humana, no sentido de ser Ele “mediador entre Deus e o homem, Jesus Cristo homem“. Essa justiça é interior ou exterior. Sua justiça interior é a imagem de Deus estampada em todos os poderes e faculdades de sua alma. É uma cópia de sua justiça divina, na medida em que ela pode ser comunicada ao espírito humano. É uma reprodução da pureza divina, da justiça divina, da misericórdia e da verdade. Inclui amor, reverência, resignação à vontade de seu Pai; humilde, mansidão, ternura; amor à humanidade perdida e todos os demais pendores celestiais – e tudo no grau mais elevado, sem qualquer defeito ou mistura de impiedade.

Era, de resto, parte de sua justiça exterior o fato de Ele não ter nenhuma falha; de não ter conhecido pecado exterior de nenhuma espécie, nem ter sido “achado dolo em sua boca“: Ele jamais pronunciou uma palavra imprópria, nem praticou nenhuma ação imprópria. Até aqui é uma justiça unicamente negativa, embora tal como jamais pertenceu e jamais pertencerá a alguém que tenha nascido de mulher, excetuando-se tão somente a Jesus. Mas essa justiça exterior era também positiva: Jesus fez todo o bem: em toda a palavra que lhe saiu dos lábios, em todas as obras efetuadas pelas suas mãos, fez precisamente “a vontade daquele que o enviou“. Em todo o decurso de sua vida, Ele fez a vontade de Deus na terra, como os anjos a cumprem nos céus. Tudo quanto praticou e disse foi exatamente correto em todas as circunstâncias. Sal obediência foi perfeita, quer em conjunto, quer em cada uma de suas partes. “Ele cumpriu toda a justiça“.

Mas essa obediência implicava em mais do que tudo isso: implicava não só em fazer, mas em sofrer; resigna-se a toda a vontade de Deus, desde a época em que veio ao mundo até “quando levou nossos pecados em seu corpo para o madeiro“; sim, até que, tendo feito completa propiciação pelo pecado, “inclinou a cabeça e rendeu o espírito“. Esta é a justiça que usualmente se chama a justiça passiva de Cristo, sendo a primeira sua justiça ativa. Como, porém, a justiça ativa e passiva de Cristo nunca se apresentaram, de fato, separadas uma da outra, jamais teremos necessidade de as apartar, seja falando, seja pensando. E é à vista de ambas, em conjunto, que Jesus é chamado “O Senhor, nossa Justiça“.

II – Quando é, porém, que qualquer de nós pode verdadeiramente dizer: – “O Senhor, nossa Justiça“? Em outras palavras, quando é que a justiça de Cristo no é imputada, e em que sentido nos é imputada? Lançando sobre o mundo um olhar envolvente, vemos que todos os homens que nele habitam são crentes ou incrédulos. O primeiro ponto que não admite controvérsia razoável entre os homens é, pois, este: a justiça de Cristo é imputada a todos os crentes; aos incrédulos, não. Quando é imputada? Quando creem: nessa mesma hora lhes pertence a justiça de Cristo. É imputada a todo que crê, logo que crê: a fé e a justiça de Cristo são inseparáveis. Porque, se o pecador crê segundo as Escrituras, crê na justiça de Cristo. Não há verdadeira fé, isto é, fé justificadora que não tenha a justiça de Cristo como seu objeto.

É verdade que os crentes podem não falar, todos eles, de modo semelhante; podem não usar unanimemente a mesma linguagem. Não é de esperar que isto aconteça, nem razoavelmente podemos exigir que eles o façam. Mil circunstâncias podem determinar que os crentes variem uns dos outros na maneira de se expressarem; mas a diferença de expressão não implica necessariamente em diferença de sentimentos. Diversas pessoas podem usar de expressões diversas, querendo significar, todavia, a mesma coisa. Nada é mais comum do que isto, embora raramente o levemos em conta. Também não é fácil às mesmas pessoas, tratando das mesmas coisas em épocas que se distanciam, usar exatamente das mesmas expressões, ainda que conservem o mesmo sentido: como então podemos ser rigorosos, exigindo que os outros usem das mesmas expressões de que usamos nós?

Podemos dar um passo avante: os homens podem diferir de nós em suas opiniões, como em suas expressões, e, contudo, ser participantes conosco da mesma fé preciosa. É possível que não tenham uma apreensão exata das próprias bênçãos de que desfrutam. Suas ideias podem não ser tão claras e sua experiência pode não ser tão intensa quanto a nossa. Há uma grande diferença entre as faculdades naturais do homem; em particular de seu entendimento; e essa diferença aumenta consideravelmente segundo a educação que cada um recebe. Só este fato pode, na verdade, ocasionar uma inconcebível divergência nas opiniões de várias espécies. Como não variarão essas opiniões no tocante às doutrinas principais, assim como variam em qualquer outro assunto? Entretanto, embora suas opiniões tanto como suas expressões, se apresentem confusas e inexatas, seus corações podem ainda apegar-se a Deus mediante Cristo, participando verdadeiramente de sua justiça.

Façamos, pois, aos outros todas as concessões que desejaríamos para nós mesmos, se estivéssemos em seu lugar. Quem ignora (para ferirmos outra vez somente a circunstância já notada), o poder espantoso da educação? E quem sabe isto, pode esperar ou supor que um membro da igreja de Roma fale ou pense claramente sobre este assunto? E, ainda mais, se tivéssemos ouvido o moribundo Belarmino exclamar, quando lhe perguntaram: “Para qual dos santos queres volver-te?” – Fidere meritis Christi tutissimum: “É mais seguro confiar nos méritos de Cristo“, – poderíamos afirmar que, não obstante suas opiniões errôneas, deixasse ele de ter parte na justiça de Cristo?

Mas em que sentido a justiça é imputada aos crentes? Neste: todos os crentes são perdoados e aceitos, não por qualquer coisa que neles haja, ou por qualquer mérito que neles tenha havido, ou por aquilo que ainda possa ser feito, mas total e unicamente em razão do que Cristo fez e sofreu por eles. Digo outra vez, não por qualquer coisa que neles haja, ou de qualquer coisa feita por eles, por sua própria justiça ou obras: “Não por obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua própria misericórdia nos salvou“. “Pela graça sois salvos mediante a fé – não por obras, para que ninguém se glorie“, mas total e exclusivamente em atenção ao que Cristo fez e sofreu por nós. Somos “justificados livremente por sua graça, através da redenção que há em Jesus Cristo“. E este é o meio não somente de obtenção o favor de Deus, mas de nossa perseverança nesse favor. Por esse meio é que primeiro nos chegamos a Deus; pelo mesmo processo é que continuamos depois achegados a Ele. Andamos pelo mesmo caminho novo e de vida; até que nosso espírito volte para Deus.

Esta é a doutrina em que tenho constantemente crido e tenho constantemente ensinado por vinte e oito anos aproximadamente. Publiquei isto a todo o mundo no ano de 1738, e dez ou doze vezes depois, naquelas palavras e em muitas outras do mesmo gênero, extraídas das homilias de nossa Igreja: – “Estas coisas devem concorrer necessariamente em nossa justificação: da parte de Deus, sua grande misericórdia e graça; da parte de Cristo, a satisfação da justiça de Deus; e, de nossa parte, fé no méritos de Cristo. Deste modo a graça de Deus não exclui sua justiça no processo de nossa justificação, mas somente exclui a justiça do homem como fator de nossa justificação“. “Que somos justificados só pela fé, afirma-se para claramente excluir todo o mérito de nossas obras e para só atribuir inteiramente a Cristo o mérito e o merecimento de nossa justificação“. Nossa justificação procede livremente da simples misericórdia de Deus. Porque, quando o mundo inteiro não era capaz de pagar sequer uma parte de nosso resgate, aprouve a Deus, sem nenhuma intervenção de nossos merecimentos, preparar-nos o corpo e o sangue de Cristo, para que por eles fosse pago nosso resgate e satisfeita sua justiça. Cristo é, pois, agora, a justiça de todos os que verdadeiramente creem.

Os hinos publicados um ou dois anos depois disso, e a seguir divulgados várias vezes (um testemunho claro de que meu conceito era ainda o mesmo), servem plenamente ao mesmo propósito. Citar todas as passagens referentes ao assunto seria transcrever grande parte dos volumes. Para exemplo transcrevo publicação que se reeditou há sete, cinco e dois anos, e há poucos meses:

“Jesus, teu sangue e tua justiçaSão meus adornos, minhas vestes gloriosas:Entre os mundos flamejantes, nestes adornos,Levantarei jubiloso minha cabeça!”.

O hino todo, do começo ao fim, expressa o mesmo sentimento.

No sermão sobre a justificação, publicado há dezenove e outra vez há sete ou oito anos, expresso a mesma coisa nestas palavras: “Em consideração a isto – que o Filho de Deus provou a morte por todos os homens, Deus agora reconciliou o mundo consigo mesmo, não lhe imputando seus primitivos pecados. De modo que, em atenção a seu bem-amado Filho, ao que Ele sofreu por nós, Deus agora nos outorga, sob uma única condição (que Ele próprio também nos habilita a preencher), tanto a remissão da pena merecida pelos nossos pecados, como nossa restauração em seu favor e a recondução de nossas almas mortas à vida espiritual, como penhor da vida eterna“.

Mais larga e particularmente se expressa isto no Tratado sobre a Justificação, que publiquei no ano passado: Se tomarmos a frase – “imputar a justiça de Cristo, como a comunicação (por assim dizer) da justiça de Cristo, incluindo sua obediência, tanto passiva como ativa, com os resultados desse fato, isto é, os privilégios, bênçãos e benefícios alcançados por aquela justiça, em tal sentido pode-se dizer que o crente é justificado pela justiça de Cristo e ele imputada“. A significação é a que Deus justifica o crente em atenção à justiça de Cristo, e não por qualquer justiça que aquele possua. Assim diz Calvino (Institutas, 1 2 e 17): “Cristo, por sua obediência, alcançou ou adquiriu-nos a justiça“. E mais: “Todas as expressões como estas: – que somos justificados pela graça de Deus, que Cristo é nossa justiça, que a justiça foi-nos alcançada pela morte e ressurreição de Cristo, significam a mesma coisa, isto é, que a justiça de Cristo, tanto sua justiça ativa como passiva, é a causa meritória de nossa justificação, e assegura-nos, da parte de Deus, que, mediante nossa fé, somos por Ele reputados como justos” (página 5).

Mas talvez objetará alguém: “Afirmas, entretanto, que a fé nos é imputada como justiça“. São Paulo afirma isto sem cessar; por isso o afirmo também. A fé é imputada como justiça a todo que crê, isto é, a todo que crê na justiça de Cristo. Isto é, todavia, a mesma coisa que já foi dita antes: porque por aquela expressão quero dizer, nem mais, nem menos, que somos justificados pela fé e não pelas obras; ou que todo crente é perdoado e aceito meramente em razão do que Cristo fez e sofreu.

Mas o crente não é investido na justiça de Cristo ou dele revestido? Sem dúvida que o é. E as palavras acima citadas são, precisamente, a linguagem de todo o coração crente:

“Jesus, teu sangue e tua justiça,São meus adornos, minhas vestes gloriosas”.

Isto é, “em atenção à sua justiça ativa e passiva, sou perdoado e aceito por Deus“.

Não devemos, entretanto, abrir mão dos andrajos imundos de nossa própria justiça, antes que possamos revestir-nos da imaculada justiça de Cristo? Certamente que devemos, o que vale dizer que devemos arrepender-nos, antes que possamos crer no Evangelho. Devemos romper com toda dependência de nós mesmos antes que verdadeiramente possamos depender de Cristo. Devemos banir toda confiança em nossa própria justiça, ou não poderemos ter verdadeira confiança na justiça de Cristo. Enquanto não nos libertarmos da confiança em qualquer coisa que façamos, não poderemos perfeitamente confiar no que Cristo fez e sofreu. Primeiro recebemos a sentença de morte em nós mesmos; depois confiamos no que viveu e morreu por nós.

Não crês na justiça inerente? Sim, desde que ela se coloque em seu próprio lugar, não como fundamento de nossa aceitação por parte de Deus, mas como fruto dessa aceitação; não em lugar da justiça imputada, mas como consequência desta. Creio que Deus implanta a justiça em todos aqueles a quem Ele imputa justiça. Creio que “Jesus Cristo foi feito por Deus nossa santificação“, assim como também nossa “justiça“; ou que Deus santifica, assim como justifica, a todos os que nele creem. Àqueles a quem é imputada a justiça de Cristo tornam-se justos pelo Espírito de Cristo; são renovados à imagem de Deus, “segundo a semelhança com que foram criados, em justiça e verdadeira santidade“.

Colocadas então a fé em lugar de Cristo ou de sua justiça? De modo nenhum: tomo particular cuidado em colocar cada coisa em seu próprio lugar. A justiça de Cristo é o fundamento total e único de toda nossa esperança. É pela fé que o Espírito Santo habilita-nos a construir sobre tal fundamento. Deus dá essa fé: nesse momento somos aceitos por Deus e, ainda assim, não em razão daquela fé, mas em atenção ao que Cristo fez e sofreu por nós. Vês, pois, que cada uma dessas ideias tem seu próprio lugar e uma não atropela a outra: cremos, amamos, intentamos andar irrepreensíveis em todos os mandamentos do Senhor; todavia:

“Enquanto assim empregamosNossos momentos cá em baixo,Esquecemo-nos de nós mesmosE procuramos refúgio na justiça de JesusSomente sua paixãoAlicerce nos garante;E perdão reclamamos.E redenção eterna, – no nome de Jesus”.

Não nego, pois, mais, a justiça de Cristo, do que nego sua divindade: o homem pode acusar-me tanto da negação de uma como da outra. Também não nego a justiça imputada: esta é outra maldosa e injusta acusação. Sempre afirmei, e até agora continuamente afirmo, que a justiça de Cristo é imputada a todo aquele que crê. Mas, quem o nega? Porque, todos os infiéis, sejam batizados ou não; todos os que dizem que o glorioso Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo é uma fábula engenhosamente arquitetada; todos os socianos e arianos; todos os que contestam a suprema divindade do Senhor que os resgatou, negam, consequentemente, sua divina justiça, supondo-o mera criatura; e negam sua justiça humana, como imputada a todo homem, visto que eles creem que cada um é aceito por sua própria justiça.

A justiça humana de Cristo, ou a imputação dessa justiça, como a causa meritória total e única da justificação do pecador diante de Deus, é igualmente negada pelos membros da Igreja Romana, – por todos os que são fiéis aos princípios de sua própria Igreja. Mas, indubitavelmente, muitos há no meio deles cuja experiência transcende aos princípios e que, muito embora longe estejam de se expressar com justeza, algo sentem que não sabem como definir. Embora suas concepções no tocante a essa grande verdade sejam tão cruas como suas expressões, ainda assim creem no seu coração: descansam somente em Cristo, tanto para a salvação presente como para a salvação eterna.

Com esses podemos alinhar mesmo os das igrejas reformadas, designados comumente pelo nome de místicos. Um dos principais dentre eles, no século atual (pelo menos na Inglaterra), foi Law. É bem sabido que ele absoluta e zelosamente negava a imputação da justiça de Cristo, e fazia-o tão desabusadamente como Roberto Barclay, que não tinha escrúpulo de dizer: “Justiça imputada! – contrasenso imputado“. A comunidade conhecia pelo nome de quakers esposa o mesmo sentimento. Mesmo o grosso dos que fazem profissão de membros da Igreja da Inglaterra, são totalmente ignorantes do assunto e nada sabem acerca da justiça imputada, ou negam esta doutrina e a da justificação pela fé, considerando-as como destrutivas das boas obras. A estes podemos adicionar um número considerável de pessoas chamadas anabatistas, unidas a milhares de presbiterianos e independentes, esclarecidos ultimamente pelos escritos do Dr. Taylor. Sobre os últimos não me sinto inclinado a proferir qualquer sentença: entrego-os Àquele que os criou. Mas, pode alguém ousar dizer que todos os místicos (tais como Law em particular), todos os quakers, todos os presbiterianos ou independentes e todos os membros da igreja da Inglaterra, que não são claros em suas opiniões ou expressões, estejam destituídos de qualquer experiência cristã? Que, consequentemente, estejam todos em estado de perdição, “sem esperança e sem Deus no mundo?“. Qualquer que seja a confusão de suas ideias, por mais imprópria que seja sua linguagem, não haverá muitos no meio deles, cujos corações são retos para com Deus e conhecem efetivamente “o Senhor, nossa Justiça?“.

Mas, louvado seja Deus, não estamos entre os que são tão obscuros em seus conceitos e expressões. Não negamos mias a frase do que a coisa expressa; mas estamos pouco dispostos a impô-las a outros homens. Usem eles as mesmas ou outras expressões, segundo julguem ser mais exatamente somente no que Cristo fez e sofreu, para o perdão, a graça e a glória. Não podemos expressá-lo melhor do que através das palavras de Hervey, dignas de serem escritas em letras de ouro: “Não cuidamos de qualquer amontoado particular de frases. Somente se humilhem os homens como criminosos arrependidos aos pés de Cristo; descansem eles, tão submissamente como inválidos, em seus méritos – e estarão indubitavelmente no caminho que leva à bendita imortalidade“.

Há necessidade, há qualquer possibilidade de dizer mais? Fiquemos somente com esta declaração, e toda contenda acerca dessa ou daquela frase especial será cortada pela raiz. Guardai isto: “Todos os que se humilham como criminosos arrependidos aos pés de Cristo, e em seus méritos descansam tão submissamente como inválidos, estão no caminho que leva à bendita imortalidade“; e, depois, que lugar haverá para disputa? Quem nega isto? Não nos entendemos todos neste ponto? A respeito de que contendemos então? Um homem de paz propõe os termos de acomodação a todos os partidos digladiantes. Não desejamos outra coisa: aceitamos os termos, subscrevemo-los com o coração e com a pena. Quem quer que se recuse a fazê-lo, seja o tal assinalado: é inimigo da paz, perturbador de Israel, pervertedor da Igreja de Deus.

Entretanto, que nos não espantemos com o fato de alguém usar a frase: “a justiça de Cristo“, ou “a justiça de Cristo me é imputada“, como cobertura de sua injustiça. Temos visto fazer-se isto um milhar de vezes. Um homem é repreendido, suponha-se, por embriaguez: “Oh!, diz ele, não pretendo justiça de minha parte; Cristo é minha justiça!“. Outro é advertido de que “o que comete fraude, o injusto, não herdará o Reino de Deus“: ele retruca com toda a convicção: “Sou injusto, mas tenho uma justiça imaculada em Cristo“. E assim, embora esteja o homem tão longe da prática como do caráter cristão; embora não tenha a mente que havia em Cristo, nem ande de modo algum como Ele andou, contudo se abroquela contra toda convicção de culpa naquilo que denomina “a justiça de Cristo“.

É a contemplação de tantos exemplos deploráveis como os citados que nos faz sóbrios no uso daquelas expressões. E não posso deixar de chamar a atenção de todos vós, que empregais com frequência, suplicando-vos, em nome de Deus nosso Salvador, a quem pertenceis e a quem servis, que cuidadosamente retenhais tudo quanto ouvis contra o maldito abuso daquelas fórmulas. Oh! Adverti-os (pode ser que eles ainda vos ouçam), contra a continuação “no pecado para que superabunde a graça“. Adverti-os contra o fazerem “a Cristo ministro do pecado“, contra a invalidação daquele solene decreto de Deus: “Sem santidade nenhum homem verá ao Senhor”, ainda que tenha a fantasia vã de ser santo em Cristo! Oh! Adverti-os de que, se permanecerem injustos, a justiça de Cristo de nada lhes aproveitará! Clama com força (não há motivo para isto?) que a justiça de Cristo justamente nos é imputada para este fim: para que “a justiça da lei seja cumprida em nós“, e para que possamos “viver sobriamente, em reta piedade, no presente mundo“.

Resta somente uma aplicação curta e clara.

Primeiro: desejo dirigir-me a vós que violentamente vos insurjis contra aquelas expressões, estando prontos a condenar como antinominianos a quantos delas usem. Não representa isto o encurvar demasiadamente o arco para o outro extremo? Por que condenaríeis a todos que não falam como vós falais? Por que contenderíeis com eles, por usarem as frases que preferem, gozando, como cós, da mesma liberdade? Ora, se eles debatem convosco por este motivo, não imiteis a devoção extrema que censurais. Afinal, concedei-lhes a liberdade que eles devem conceder-vos. E por que ficaríeis irados por causa de uma expressão? “Oh! Tem-se abusado dela!” e de que expressão não se tem abusado? O abuso pode ser, todavia, removido, permanecendo, ao mesmo tempo, o uso. Acima de tudo, fazei certa a possessão ao importante sentido que se esconde sob aquela expressão: “todas as bênçãos de que desfruto , tudo quanto espero no tocante ao tempo e à eternidade, decorrem total e exclusivamente dos méritos do que Cristo fez e sofreu por mim“.

Desejaria, em segundo lugar, aduzir umas poucas palavras, dirigidas a vós que estais apaixonados por aquelas expressões. Permiti-me perguntar: não concedo bastante? Que pode desejar mais o homem razoável? Confesso o sentido integral daquilo sobre que contendeis; isto é, que temos todas as bênçãos através da justiça de Deus, nosso Salvador. Concedo que useis de quaisquer expressões que escolherdes, por um milhar de vezes; somente resguardando-as daquele abuso mortal, que estais tão profundamente interessados em evitar quanto eu mesmo. Frequentemente uso a expressão em debate – justiça imputada – e muitas vezes coloco esta e locuções equivalentes nos lábios de toda a congregação. Concedei-me neste ponto liberdade de consciência: concedei-me o direito de juízo privado. Concedei-me o direito de usá-la na medida em que julgo preferível a qualquer outra frase; e não vos encolerizeis comigo, se eu não julgar conveniente usar de uma só expressão de dois em dois minutos. Podeis fazê-lo, se quiserdes; mas não me condeneis, se o não fizer. Não me representeis, por esta razão, como papista ou como “inimigo da justiça de Cristo“. Tolerai-me, como eu vos tolero; de outro modo, como “cumpriremos a lei de Cristo?“. Não afeteis um ar de tragédia, como seu eu estivesse “subvertendo os próprios fundamentos do Cristianismo“. O que faz isto, faz-me um grande mal: o Senhor não lhe impute este pecado! Tenho lançado, no decorrer de muitos anos, o mesmo fundamento que lançais. E, na verdade, “outro fundamento não pode ser posto, a não ser Jesus Cristo“. Construo sobre Ele a santidade interior e exterior, como o fazeis, pela fé. Não tolereis, pois, qualquer desgosto, ou malignidade, nem nenhuma desconfiança ou frieza em vosso coração. Se houver diferença de conceito, – onde estará nossa religião, se não pudermos pensar e deixar pensar? Que impede, pois, que me perdoeis tão facilmente como posso perdoar-vos? Principalmente se apenas existe simples variante no modo de expressar! Não; dificilmente se chega a tanto: – toda disputa não consiste somente de certos modos especiais de expressão, que se devem usar mais ou menos frequentemente? Decididamente deve ser profundo nosso desejo de contender uns com os outros, para que façamos dessas coisas um pomo de discórdia! Oh! Não consintamos jamais que, por semelhante ninharias, demos lugar a que os nossos comuns inimigos blasfemem! Procuremos, antes, suprimir toda ocasião de contenda, arrebatando-a aos que buscam tal ocasião. Juntemos de agora por diante (oh! por que o não o fizemos há mais tempo!) nossos corações e nossas mãos no serviço de nosso grande Mestre! Como temos “um Senhor, uma fé, uma esperança de nossa vocação“, uns aos outros apertemos as mãos em Deus, e com um só coração e uma só boca proclamemos a toda a humanidade – “O SENHOR NOSSA JUSTIÇA!“. 

John Wesley (Epworth, Inglaterra, 17 de junho de 1703 – Londres, 2 de março de 1791) – Foi um clérigo anglicano e teólogo cristão britânico, líder precursor do movimento metodista e, ao lado de William Booth, um dos dois maiores avivacionistas da Grã-Bretanha.

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