O Sangue de Cristo

Deus nos revela claramente, na Sua Palavra, que so­mente há uma resposta para cada necessidade humana – Seu Filho, Jesus Cristo. Em toda a Sua ação a nosso res­peito, Deus usa o critério de nos tirar do caminho, pondo Cristo, o Substituto, em nosso lugar. O Filho de Deus morreu em nosso lugar, para obter o nosso perdão; Ele vive em vez de nós, para alcançar o nosso livramento. Podemos falar, pois, de duas substituições – uma Substi­tuição na Cruz, que assegura o nosso perdão, e uma Substituição interior que assegura a nossa vitória. Ajudar-nos-á grandemente, e evitará muita confusão, conservar constantemente perante nós este fato: Deus responderá a todos os nossos problemas de uma só forma: mostrando-nos mais do Seu Filho.

Nosso problema duplo: os pecados e o pecado

Tomaremos agora, como ponto de partida para o nos­so estudo da vida cristã normal, aquela grande exposição da mesma que encontramos nos primeiros oito capítulos da Epístola aos Romanos e encararemos o assunto de um ponto de vista experimental e prático. Será de grande au­xílio notar, em primeiro lugar, uma divisão natural desta seção de Romanos em duas, e notar certas diferenças evi­dentes no conteúdo das duas partes.

Os primeiros oito capítulos de Romanos constituem em si mesmos, uma unidade completa. Os quatro capítu­los e meio, de 1.1 a 5.11, formam a primeira metade des­ta unidade, e os três capítulos e meio, de 5.12 a 8.39, a segunda metade. Uma leitura cuidadosa revelar-nos-á que o conteúdo das duas metades não é o mesmo. Por exem­plo, no argumento da primeira seção encontramos em proeminência a palavra plural “pecados”. Na segunda seção, contudo, esta ênfase é modificada, porque, enquanto a palavra “pecados” ocorre apenas uma vez, a palavra singular “pecado” é usada repetida vezes, e constitui o assunto básico e principal das considerações. Por que assim?

Porque, na primeira seção, considera-se a questão dos pecados que eu tenho cometido diante de Deus, que são muitos e que podem ser enumerados, enquanto que, na segunda, trata-se do pecado como princípio que opera em mim. Sejam quais forem os pecados que eu cometo, é sempre o princípio do pecado que me leva a cometê-los. Preciso de perdão para os meus pecados, mas preciso também de ser libertado do poder do pecado. Os primei­ros tocam a minha consciência, o último a minha vida. Posso receber perdão para todos os meus pecados, mas, por causa do meu pecado, não tenho, mesmo assim, paz interior permanente.

Quando a luz de Deus brilha, pela primeira vez, no meu coração, clamo por perdão, porque compreendo que cometi pecados diante d’Ele; mas, após ter recebido o perdão dos pecados, faço uma nova descoberta, ou se­ja, a descoberta do pecado, e compreendo que não só cometi pecados diante de Deus, mas também que existe algo de errado dentro de mim. Descubro que tenho a na­tureza do pecador. Existe dentro de mim uma inclinação para pecar, um poder interior que leva ao pecado. Quan­do aquele poder anda solto, eu cometo pecados. Posso procurar e receber o perdão, depois, porém, peco outra vez. E, assim, a vida continua num círculo vicioso de pe­car e ser perdoado e depois pecar outra vez. Aprecio o fato bendito do perdão de Deus, mas eu desejo algo mais do que isso: preciso de livramento. Preciso de perdão pa­ra o que tenho feito, mas preciso também de ser liberta­do daquilo que sou.

O duplo remédio de Deus: o Sangue e a Cruz

Assim, nos primeiros oito capítulos de Romanos, apresentam-se dois aspectos da salvação: em primeiro lugar, o perdão dos nossos pecados e, em segundo lugar, a nossa libertação do pecado. Agora, ao considerar este fato, devemos notar outra distinção.

Na primeira parte de Romanos, 1 a 8, encontramos duas referências ao Sangue do Senhor Jesus, em 3.25 e 5.9. Na segunda, é introduzida uma nova ideia, em 6.6, onde lemos que fomos “crucificados” com Cristo. O argumento da primeira parte centraliza-se em torno da­quele aspecto da obra do Senhor Jesus, que é representa­do pelo “Sangue” derramado para nossa justificação, pe­la “remissão dos pecados”. Esta terminologia não é, con­tudo, levada para a segunda seção, cujo argumento gira em tomo do aspecto da Sua obra representado pela “Cruz”, o que quer dizer, pela nossa união com Cristo na Sua morte, sepultamento e ressurreição. Esta distin­ção tem muito valor. Veremos que o Sangue soluciona o problema daquilo que nós fizemos, enquanto a Cruz so­luciona o problema daquilo que nós somos. O Sangue purifica os nossos pecados, enquanto que a Cruz atinge a raiz da nossa capacidade de pecar. O último aspecto será alvo das nossas considerações nos capítulos que se seguem.

O problema dos nossos pecados

Comecemos, pois, com o precioso Sangue do Senhor.

O Sangue do Senhor Jesus Cristo é de grande valor para nós, porque trata dos nossos pecados e nos justifica a vista de Deus, conforme se declara nas seguintes passa­gens:

“Todos pecaram” (Rm 3.23).

“Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5.8-9).

“Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, me­diante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tole­rância, deixado impunes os pecados anteriormente come­tidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.24-26).

Teremos ocasião, num estágio mais adiantado do nos­so estudo, de olhar mais particularmente para a natureza real da Queda e para o processo da recuperação. Nesta altura, queremos apenas lembrar de que o pecado, quan­do entrou, expressou-se em forma de desobediência a Deus (Rm 5.19). Ora, devemos considerar que, quando isto acontece, o que imediatamente se lhe segue é o sentimento de culpa. O pecado entra na forma de desobediência, para criar, em primeiro lugar, separação entre Deus e o ho­mem, do que resulta ser este afastado de Deus. Deus já não pode ter comunhão com ele, por agora existir algo que a impede, e que, através de toda a Escritura, é co­nhecido como “pecado”. Desta forma, é Deus que, pri­meiramente, diz: “Todos… estão debaixo do pecado” (Rm 3.9). Em segundo lugar, o pecado, que daí em dian­te constitui barreira à comunhão do homem com Deus, comunica-lhe um sentimento de culpa – de afastamento e separação de Deus. Agora, é o próprio homem que, mediante a sua consciência despertada, diz: “Pequei” (Lc 15.18). E ainda não é tudo, porque o pecado oferece também a Satanás uma possibilidade de acusação diante de Deus, enquanto o nosso sentimento de culpa lhe dá ocasião para nos acusar nos nossos corações; assim, pois, em terceiro lugar, é o “acusador dos irmãos” (Ap 12.10), que agora diz: “Tu pecaste”.

Portanto, para nos remir, e nos fazer regressar ao pro­pósito de Deus, o Senhor Jesus teve que agir em relação a estas três questões: do pecado, da culpa, e da acusação de Satanás contra nós. Primeiramente, teve que ser resol­vida a questão dos nossos pecados, e isso foi feito pelo precioso Sangue de Cristo. Depois, tem que ser resolvido o assunto da nossa culpa e é somente quando se nos; mos­tra o valor daquele Sangue que a nossa consciência culpa­da encontra descanso. E, finalmente, o ataque do inimi­go tem que ser encarado e as suas acusações respondidas. As Escrituras mostram como o Sangue de Cristo opera eficazmente nestes três aspectos, em relação a Deus, em relação ao homem, e em relação a Satanás.

Temos, portanto, necessidade de nos apropriarmos destes valores do Sangue, se quisermos de fato prosse­guir. É absolutamente essencial. Devemos ter conheci­mento básico do fato da morte do Senhor Jesus, como nosso Substituto, sobre a Cruz, e uma clara compreen­são da eficácia do Seu sangue, em relação aos nossos pe­cados, porque, sem isto, não poderemos dizer que inicia­mos a marcha. Olharemos então estes três aspectos mais de perto.

O Sangue é primariamente para Deus

O Sangue é para expiação e, em primeiro lugar, rela­ciona-se com a nossa posição diante de Deus. Precisamos de perdão dos nossos pecados cometidos para que não caiamos sob julgamento; e eles nos são perdoados, não porque Deus não os leva a sério, mas porque Ele vê o Sangue. O Sangue é, pois, primariamente, não para nós, mas para Deus. Se eu quero entender o valor do Sangue, devo aceitar a avaliação que Deus dele faz e, se eu não conhecer o valor que Deus dá ao Sangue, nunca saberei qual é o seu valor para mim. É só na medida em que me é dado conhecer, pelo Seu Espírito Santo, a estimativa que Deus faz do Sangue, que eu próprio aprendo o seu valor, e vejo quão precioso o Sangue realmente é para mim. Todavia, o seu primeiro aspecto é para Deus. Atra­vés do Velho e do Novo Testamento, a palavra “sangue” é usada em conexão com a ideia da expiação, segundo creio, mais de cem vezes, e sempre, e em toda a Escritura algo que diz respeito a Deus.

No calendário do Velho Testamento há um dia que tem grande significação quanto aos nossos pecados, o Dia da Expiação. Nada explica esta questão dos pecados tão claramente como a descrição daquele dia. Em Levítico 16 lemos que, no Dia da Expiação, o Sangue era toma­do da oferta pelo pecado e trazido ao Lugar Santíssimo e ali espargiu sete vezes diante do Senhor. Devemos com­preender isto muito bem. Naquele dia, a oferta pelo pe­cado era oferecida publicamente no pátio do Tabernácu­lo. Tudo estava ali à vista de todos, e por todos podia ser observado. Mas o Senhor ordenou que nenhum homem entrasse no Tabernáculo, a não ser o sumo sacerdote. Era somente ele que tomava o sangue, e, entrando no Lugar Santíssimo, o espargia ali para fazer a expiação perante o Senhor. Por quê? Porque o sumo sacerdote era um tipo do Senhor Jesus na Sua obra redentora (Hb 9.11-12), e, assim, em figura, era o único que fazia este traba­lho. Ninguém, exceto ele, podia mesmo aproximar-se da entrada. Além disso, havia relacionado com a sua entra­da ali, um único ato: a apresentação do sangue a Deus como algo que Ele aceitara algo em que Ele Se satisfaria. Era uma transação entre o sumo sacerdote e Deus, no Santuário, fora da vista dos homens que se beneficiaram dela. O Senhor exigia-o. O Sangue é, pois, em primeiro lugar, para Ele.

Mas, anteriormente, encontramos descrito em Êxodo 12.13, o derramamento do sangue do cordeiro pascal, no Egito, para redenção de Israel. Este é, creio um dos me­lhores tipos, no Velho Testamento, da nossa redenção. O sangue foi posto na verga e nas ombreiras das portas, en­quanto que a carne do cordeiro era comida no interior da casa; e Deus disse: “Vendo Eu sangue passarei por ci­ma de vós”. Eis outra ilustração de o sangue não se desti­nar a ser apresentado ao homem, e, sim, a Deus, pois que o sangue era posto nas vergas e nas ombreiras das portas, de modo que os que se encontravam em festa dentro das casas não pudessem vê-lo.

Deus está satisfeito

É a santidade de Deus, a justiça de Deus, que exige que uma vida sem pecado seja dada em favor do homem. Há vida no Sangue, e aquele Sangue tem que ser derra­mado em favor de mim, pelos meus pecados. Deus requer que o Sangue seja apresentado com o fim de satisfazer a Sua própria justiça, e é Ele que diz: “Vendo eu sangue passarei por cima de vós”. O Sangue de Cristo satisfaz Deus inteiramente. Desejo agora dizer uma palavra a respeito disto aos meus irmãos mais novos no Senhor, porque é neste caso que muitas vezes caímos em dificuldade. Em nossa condição de descrentes, podemos não ter sido absolutamente mo­lestados pela nossa consciência, até que a Palavra de Deus começou a nos despertar. A nossa consciência esta­va morta, e aqueles que têm consciência morta certamen­te não têm qualquer préstimo para Deus. Mas, mais tarde, quando nós cremos, a nossa consciência pode se tomar extremamente sensível, e isto pode vir a ser real proble­ma para nós. O sentimento de pecado e de culpa pode se tornar tão grande, tão terrível, que quase nos paralisa porque nos faz perder de vista a verdadeira eficácia do Sangue. Parece-nos que os nossos pecados são tão reais, e algumas vezes algum pecado em particular pode atribular-nos tantas vezes, que chegamos ao ponto de imaginá-los maiores do que o Sangue de Cristo.

Ora, nosso mal reside em estarmos procurando sentir o seu valor e estimar, subjetivamente, o que o Sangue é para nós. Não podemos fazê-lo. O Sangue não opera des­ta forma. Destina-se, primeiramente, a ser visto por Deus. Então, temos que aceitar a avaliação que Deus faz dele. Ao fazê-lo, acharemos a nossa própria estimativa. Se, ao in­vés disto, procuramos avaliá-lo, por meio do que senti­mos, não alcançaremos nada, e permanecemos em trevas. Pelo contrário, é. questão de fé na Palavra de Deus. Temos que crer que o Sangue é precioso para Deus porque Ele assim o diz (I Pe 1.18-19). Se Deus pode aceitar o Sangue, como pagamento pelos nossos pecados e como preço da nossa redenção, então podemos ter certeza de que o dé­bito foi pago. Se Deus está satisfeito com o Sangue, logo, deve ser aceitável o Sangue. A nossa estimativa dele é so­mente de acordo com a Sua avaliação – nem mais nem. menos. Não pode, evidentemente, ser mais, mas não de­ve ser menos. Lembremo-nos de que Ele é santo e justo, e que o Deus santo e justo tem o direito de dizer que o Sangue é aceitável aos Seus olhos, e que O satisfez intei­ramente.

O acesso do crente ao sangue

O Sangue satisfaz a Deus, e deve nos satisfazer da mes­ma forma. Tem, portanto, um segundo valor, em relação ao homem, na purificação da sua consciência. Quando examinamos a Epístola aos Hebreus, vemos que o Sangue faz isto. Devemos ter “os corações purificados da má consciência” (Hb 10.22).Isto é da máxima importância. Note cuidadosamente o que diz a Escritura. O escritor não se limita a dizer que o Sangue do Senhor Jesus purifica os nossos corações, sem nada mais declarar. Erramos se relacionarmos intei­ramente, desta forma, o coração com o Sangue. Revela­remos má compreensão da esfera em que o Sangue ope­ra se orarmos: “Senhor, purifica o meu coração do pe­cado, pelo Teu Sangue”. O coração, diz Deus, é “engano­so, mais do que todas as coisas e perverso” (Jr 17.9) e Ele tem que fazer algo mais fundamental do que pu­rificá-lo: tem que nos dar um coração novo.

Não lavamos nem passamos a ferro roupas que vamos jogar fora. Como logo veremos, a “carne” é demasiada­mente má para ser purificada; tem que ser crucificada. A obra de Deus em nós tem que ser algo inteiramente novo. “Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro em vós espírito novo” (Ez 36.26).Não encontramos a declaração de que o Sangue puri­fica os nossos corações. O seu trabalho não é subjetivo assim, mas inteiramente objetivo diante de Deus. É ver­dade que o trabalho purificador do Sangue aparece aqui, em Hebreus 10, com relação ao coração, mas é, na reali­dade, com relação à consciência. “Tendo o coração puri­ficado da má consciência”.

Qual então o significado disto?

Significa que havia algo se interpondo entre mim e Deus, e que, como resultado disto, eu tinha má consciência sempre que procurava aproximar-me d’Ele, que constante­mente me lembrava da barreira que permanecia entre mim e Ele. Mas, agora, pela operação do precioso San­gue, algo foi realizado diante de Deus que removeu aque­la barreira. Deus revelou-me este fato através da Sua Pa­lavra. Quando creio nisto e o aceito, a minha consciência fica imediatamente limpa, o meu sentimento de culpa é removido, e já não tenho má consciência diante de Deus.

Cada um de nós sabe quão precioso é ter consciência sem ofensa nas nossas relações com Deus. Um coração de fé, e uma consciência limpa de toda e qualquer acu­sação, ambos são igualmente essenciais para nós, desde que sejam interdependentes. Logo que verificamos que a nossa consciência está sem descanso, a nossa fé desva­nece e imediatamente achamos que não podemos encarar Deus. Portanto, a fim de prosseguirmos com Deus, temos que conhecer o valor real atual do Sangue. O Sangue nun­ca perderá a sua eficácia como fundamento do nosso acesso a Deus, se realmente dele dependermos.

Quando entrarmos no Lugar Santíssimo, em que base, que não seja o Sangue, nos atreveremos a fazê-lo? Quero, porém, perguntar a mim mesmo: esta real­mente procurando o caminho para a presença de Deus através do Sangue, ou por algum outro meio? O que quero dizer quando afirmo “pelo Sangue?” Quero dizer apenas que reconheço os meus pecados, que confesso que necessito da purificação e da expiação e que venho a Deus confiante na obra consumada do Senhor Jesus. Aproximo-me de Deus exclusivamente através dos Seus merecimentos, e jamais na base do meu comportamento; nunca, por exemplo, na base de ter sido hoje especial­mente amável, ou paciente, ou de ter feito hoje algo especial para o Senhor. É só aproximar d’Ele. A tentação de muitos de nós, quando procuramos nos aproximar de Deus, é pen­sar que, porque Deus já operou em nós – porque já atuou para nos trazer mais perto de Si, e porque nos ensinou lições mais profundas da Cruz – então, já nos deu novos padrões tais que, sem alcançar os mesmos, não haverá mais consciência tranquila diante d’Ele. Nunca, porém, se deve basear a consciência tranquila naquilo que conseguimos ou alcançamos; somente se deve basear a consciência tranquila naquilo que conseguimos ou alcançamos; somente se pode basear na obra do Senhor Jesus, no derramamento do Seu Sangue.

Talvez esteja errado; sinto, porém, com muita convic­ção, que há entre nós quem pense desta maneira: “Hoje fui um pouco mais cuidadoso; hoje procedi um pouco melhor; esta manhã, li a Palavra de Deus com mais fer­vor, de modo que hoje posso orar melhor”. Ou, então: “Hoje tive algumas pequenas dificuldades com a família; comecei o dia sentindo-me muito melancólico e deprimi­do; não me sinto muito animado agora; parece que algo não está bem; não posso, portanto, me aproximar de Deus”.

Afinal de contas, qual é a base em que você se aproxima de Deus? Aproxima-se d’Ele na base incerta dos seus sentimentos, o sentimento de que hoje se realizou algo para Deus? Ou baseia-se a sua aproximação de Deus em algo muito mais seguro, ou seja, no Sangue derrama do no fato de que Deus olha para aquele Sangue e Se dá por satisfeito? É lógico que se pudesse conceber que o Sangue sofresse qualquer modificação, a base da sua aproximação de Deus seria menos digna de confian­ça. O Sangue, porém, nunca mudou nem mudará jamais. A sua aproximação de Deus é, portanto, sempre com ou­sadia; e essa ousadia lhe pertence pelo Sangue, e nunca pelas suas aquisições pessoais. Qualquer que seja a medi­da do que se conseguiu alcançar hoje, ontem e no dia ante­rior, logo que se faça um movimento consciente para o Lu­gar Santíssimo, deve-se permanecer no único funda mento seguro – o Sangue derramado. Quer tenha tico um dia bom ou mal, quer tenha pecado conscientemente ou não, a base da sua aproximação é sempre a mesma – o sangue de Cristo. Esse é o fundamento sobre o qual se pode entrar, e não há outro.

Vê-se que, como em muitas outras fases da nossa expe­riência cristã, nosso acesso a Deus tem dois aspectos: um inicial e outro progressivo. O primeiro se nos apresenta em Efésios dois, e o ultimo em Hebreus 10. Inicialmente, a nossa posição perante Deus foi garantida pelo Sangue, porque fomos “aproximados pelo Sangue de Cristo” (Ef 2.13). Mas, daí em diante, a base do nosso contínuo acesso ainda é o Sangue, porque o Apóstolo nos exorta: “Tendo, pois, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus… aproximemo-nos…”. (Hb 10.19-22). De inicio chegamos perto pelo Sangue, e, para continuar nesta nova relação, eu venho a Deus a todo momen­to pelo Sangue. Não se trata, portanto, de haver uma ba­se para a minha salvação, e outra para manter minha comunhão. Alguém dirá: “Isso é muito simples; é o ABC do Evangelho”. Sim, mas a tragédia, com muitos de nós, é que nos desviamos do ABC. Chegamos a pensar que fazemos tais progressos que podemos dispensar o Sangue, jamais, porém, poderíamos fazê-lo. Não, a minha aproximação de Deus é pelo Sangue, e é desta mesma forma que, a todo momento, eu venho perante Ele. E assim se­rá até o fim; sempre e unicamente pelo Sangue.

Isto não significa, de forma alguma, que devemos vi­ver de modo descuidado – estudaremos daqui a pouco outro aspecto da morte de Cristo em que se considera este assunto. O que importa aqui é nos contentarmos com o Sangue, que é real e suficiente.

Podemos ser fracos, no entanto o olhar para as nossas fraquezas nunca nos tornará fortes. Procurar sentir nossa maldade, e nos arrepender por isso, não nos auxiliará a sermos mais santos. Não há auxílio nisso sem haver da nossa parte confiança em nos aproximarmos de Deus mediante o Sangue, dizendo: “Senhor, não entendo to­talmente qual seja o valor do Sangue, mas sei que a Ti satisfez, e que deve me bastar como motivo único do meu apelo a Ti. Percebo agora que não se trata de eu ter progredido e alcançado algo. Só venho perante Ti na base do precioso Sangue”. Então fica realmente limpa a nossa consciência diante de Deus. Nenhuma consciência poderia jamais ficar tranquila, independentemente do Sangue. É o Sangue que nos dá intrepidez.

“Não mais teriam consciência” de pecados”: estas pa­lavras de Hebreus 10.2 têm significado transcendente. Somos purificados de todo o pecado e podemos realmen­te fazer nossas as palavras de Paulo: “Bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado” (Rm 4.8).

Vencendo o Acusador

Em face do que temos dito, podemos agora voltar-nos para encarar o Inimigo, porque há um novo aspecto do Sangue, que diz respeito a Satanás. Atualmente, é o de acusador dos irmãos (Ap 12.10), e nosso Senhor o enfrenta como tal no Seu ministério especial de Sumo Sacerdote, “pelo seu próprio sangue” (Hb 9.12). Como é, então, que o Sangue opera contra Satanás? Por este meio: colocando Deus ao lado do homem. A Queda introduziu algo no homem que deu a Satanás livre acesso a ele, de forma que Deus foi compelido a Se reti­rar. Agora, o homem está fora do Jardim – destituído da glória de Deus (Rm 3.23) – porque interiormente está separado de Deus. Por causa do que o homem fez, existe nele algo que, até que seja removido, impede Deus moralmente de o defender. Mas o Sangue remove aquela a barreira e restitui o homem a Deus e Deus ao homem. O homem agora está certo com Deus, e com Deus ao seu lado pode encarar Satanás sem temor.

Lembre-se do seguinte versículo: “O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (I Jo 1.7). Não é “todo pecado, no seu sentido geral, é cada pecado, um por um. O que significa isto? É algo maravilho­so! Deus está na luz, e na medida em que andamos na luz com Ele, tudo fica exposto e patente a ela, de modo que Deus pode ver tudo – e mesmo nestas condições o Sangue pode nos purificar de todo o pecado. Que purifi­cação! Não se trata de eu não ter profundo conhecimen­to de mim mesmo, ou de Deus não me conhecer perfeita­mente. Não significa que eu procuro esconder alguma coisa, ou que Deus não faz caso disso. Não, significa que Ele está na Luz, e que eu também estou na Luz, e que mesmo ali o Sangue precioso me purifica de todo o pe­cado. O Sangue pode fazê-lo plenamente.

Alguns de nós às vezes somos tão oprimidos pela pró­pria fraqueza que somos tentados a pensar que há peca­dos quase imperdoáveis. Recordemos de novo a palavra: “O sangue de Jesus, seu Filho nos purifica de todo pecado”. Pecados grandes, pecados pequenos, pecados que podem ser muito negros e outros que não parecem tão negros assim, pecados que penso possam ser perdoados, e pecados que parecem imperdoáveis, sim, todos os peca­dos, conscientes ou inconscientes, recordados ou esque­cidos, se incluem naquelas palavras: “Todo pecado”. “O Sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, nos purifica de todo pecado”, e isto porque o Sangue satisfaz inteiramente a Deus.

Desde que Deus, que vê todos os nossos pecados na luz, pode nos perdoar por causa do Sangue, em que base pode Satanás nos acusar? Talvez Satanás nos acuse pe­rante Deus, no entanto: “Se Deus é por nós, quem será contra nós? ” (Rm 8.31). Deus lhe mostra o Sangue do Seu querido Filho. É a resposta suficiente contra a qual Satanás não tem apelação. “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus que os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós’ (Rm 8.33-34).

Mais uma vez, portanto, vê-se que precisamos reco­nhecer a absoluta suficiência do Sangue precioso. “Quan­do, porém, veio Cristo como sumo sacerdote… pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção” (Hb 9.11-12). Foi Redentor uma só vez, e já há quase dois mil anos que está sendo Sumo Sacerdote e Advogado. Ali permanece, na presença de Deus, como “propiciação pelos nossos pe­cados” (I Jo ?). Notem-se as palavras de Hebreus 9.24: “Muito mais o Sangue de Cristo…”. Evidencia a sufi­ciência do Seu ministério. É suficiente para Deus.

Qual é a nossa atitude para com Satanás?

Isto é importante, porque ele não somente nos acusa perante Deus, mas também na nossa própria consciência. “Você pecou, e continua pecando. Você é fraco, e não há mais nada que Deus possa fazer por você”. É este o seu au­mento. E a nossa tentação é olhar para dentro, procuran­do, para nos defender, algo em nós mesmos, em nosso sentimento ou comportamento que nos dê algum motivo para crer estar errado Satanás. Outras vezes, a tendência é admitirmos a nossa grande fraqueza e, caindo no outro extremo, nos entregamos à depressão e ao desespero. Assim sendo, a acusação é uma das maiores e mais efica­zes armas de Satanás. Aponta para os nossos pecados e procura acusar-nos perante Deus; se aceitarmos as suas acusações, afundar-nos-emos imediatamente.

Ora, a razão por que aceitamos tão rapidamente as suas acusações é que ainda esperamos ter alguma justiça própria. É falsa a base da nossa esperança. Satanás con­seguiu fazer-nos olhar na direção errada, atingindo assim o seu objetivo de nos deixar incapacitados. Se, porém, tivéssemos aprendido a não confiarmos na carne, não nos espantaríamos quando surgisse o pecado, posto que pecar é a natureza intrínseca da carne. É por falta de reconhe­cermos qual seja nossa verdadeira natureza com sua debi­lidade que nós ainda confiamos em nós mesmos, de mo­do que tropeçamos sob as acusações de Satanás quando ele as levanta contra nós.

Deus tem poder para solucionar o problema dos nossos pecados; nada, porém, pode fazer por um homem que se submete à acusação, porque tal homem já não está confiando no Sangue. O Sangue fala em seu favor, prefere, porém, escutar Satanás. Cristo é o nosso Advo­gado, mas nós, os acusados, nos colocamos do lado do acusador. Ainda não reconhecemos que nada merecemos, senão a morte; que, como logo passaremos a ver, só mere­cemos ser crucificados! Não temos reconhecido que é somente Deus que pode responder ao acusador e que já o fez por meio do Sangue precioso.

Nossa salvação está em olharmos firmemente para o Senhor Jesus, reconhecendo que o Sangue do Cordeiro já solucionou toda a situação criada pelos nossos pecados.

É este o fundamento seguro em que nos firmamos. Nun­ca devemos procurar responder a Satanás, tendo por ba­se a nossa boa conduta, e sim, sempre com o Sangue. Sim, estamos repletos de pecado mas, graças a Deus que o San­gue nos purifica de todo pecado! Deus contempla o San­gue, por meio do qual o Seu Filho enfrenta a acusação, e Satanás perde toda a sua possibilidade de atacar. Semen­te a nossa fé no Sangue precioso, e a nossa recusa de sair­mos daquela posição, podem silenciar as suas acusações e afugentá-lo (Rm 8.33-34); e assim será sempre até ao fim (Ap 12.11). Que emancipação seria a nos­sa, se víssemos mais do valor, aos olhos de Deus, do precioso Sangue do Seu querido Filho!

Watchman Nee – Extraído do livro “A Vida Cristã Normal”.

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