A Simplicidade do Evangelho

O mistério da piedade continua sendo e sempre será um mistério. Tal fato, conforme foi concebido e planejado na mente de Deus, é inescrutável e infinito; e, quando nos pomos a meditar nele, ficamos perplexos. Mas não é esse o caso no tocante aos efeitos, resultados e operações do Evangelho. Nesse particular, podemos aplicar certo número de testes. Podemos comparar o Antigo Testamento com o Novo. Podemos confrontar textos bíblicos, contando com hábeis manuais de instrução, escritos pelos apóstolos e por outros, nenhum dos quais pode ser acusado de falta de intelectualidade.

No tocante ao ponto de vista do Evangelho acerca da vida e ao remédio que ele oferece para os males da vida, podemos dizer que o Evangelho se caracteriza, acima de tudo, em contraste às demais ideias, por sua simplicidade essencial e por sua objeti­vidade. Essa é a explicação do aparente paradoxo que, o Evangelho, por um lado, sempre deixou e continua deixando perplexos os maiores filósofos que o mundo já conheceu, mas, por outro lado, pode salvar até a uma criança.

Outra contradição aparentemente estranha é que homens e mulheres, ao invés de se gloriarem e se regozijarem na simplicidade do Evangelho, quase invariavelmente têm feito objeção à mesma. Esse ponto de vista tem se mostrado dominante não apenas fora da igreja, mas, com frequência, até mesmo em seu interior. Basta que comparemos a Igreja Católica Romana com a igreja neotestamentária, para que percebamos claramente essa contradição. A tendência humana sempre será fazer a religião tornar-se intricada, complexa; e essa tendência é marcante em nossa época. Assim como a vida em geral vai se tornando mais complexa a cada dia, assim também a religião tende a ser afetada pela complexidade.

No mundo secular, a vida moderna se tornou complexa e sofisticada; em todas as direções se vê organização e multiplicidade de maquinaria burocrática. Agitação e negócios, conferências e convenções são a ordem do dia. Jamais a vida neste planeta esteve tão complicada. A desculpa dada para isso é que os pro­blemas são imensos! Princípios têm sido esquecidos. As verdades simples estão sendo ignoradas, e os homens passam o seu tempo efetuando conferências a fim de sondar suas dificuldades.

A mesma inclinação se vê no mundo religioso. Parece ter ficado subentendido que, se os negócios humanos são tão difíceis e complicados, então os negócios divinos devem ser ainda mais complicados, por serem ainda maiores. Daí se origina a tendência por aumentar o cerimonial e o ritualismo, multiplicando organizações e atividades, associações e instituições. O argumento continua o mesmo, a saber, que à medida em que vão aumentando os problemas e dificuldades da vida, assim também a igreja deverá ir ampliando a sua organização e aprimorando os seus métodos. Essa argumentação, em síntese, diz ser ridículo afirmar que os vastíssimos problemas da vida atual podem ser solucionados de maneira aparentemente simples como a sugerida por aqueles que pregam o Evangelho à antiga maneira.

No que concerne a essa acusação, há duas res­postas principais. A primeira é que sempre é muito perigoso argumentar a respeito de Deus, tomando o homem por base, pressupondo que aquilo que é verdade no tocante ao homem, sempre é verdade no tocante a Deus, ainda em maior medida. Ainda que a Bíblia sugira que apesar dessa conclusão até certo ponto parecer veraz no princípio, tudo se modificou devido à entrada do pecado neste mundo. Enquanto o homem não caiu em pecado, a vida foi simples. O efeito do pecado, desde o princípio, foi o de criar complicações e dificuldades.

Esse fato é perfeitamente ilustrado nos primeiros capítulos do livro de Gênesis. Podemos ver isso no caso de Adão e Eva. Podemos percebê-lo, ainda mais claramente, no caso de Caim, que foi o primeiro a erigir uma cidade. Vemo-lo mais tarde, na tentativa de levantarem a torre de Babel. De fato, essa verdade é demonstrada por toda a parte. Na verdade, à medida em que nos afastamos de Deus, a vida vai se tornando mais emaranhada e complexa. Isso pode ser percebido não somente na Bíblia, mas, de igual modo, na história subsequente. A reforma protestante simplificou não apenas a religião, mas também a vida em seu todo, o que também ocorreu na época do Puritanismo e do despertamento da evangelização, no século XVIII.

A vida religiosa verdadeira é sempre simples. Realmente poderíamos ir mais adiante, dizendo, com toda a reverência, que nada há de tão característico nas operações de Deus, em todas as áreas, quanto a sua simplicidade e ordem essenciais. Olhemos para onde quisermos e veremos Deus sempre operando com base em um esquema sem complicações. Pode-se ver como Deus repete as estações, ano após ano – primavera, verão, outono e inverno. Examinando uma flor ou dissecando um animal, descobriremos que o padrão básico da natureza sempre é simples. A simplicidade é o método divino. Seria porventura razoável crermos que, no assunto mais vital de todos, a salvação do homem e a correção de sua vida, Deus poria de lado abrupta­mente o seu próprio método, tornando-o intricado e complexo? Sugerir tal coisa é sugerir uma contradição na mente do próprio Deus.

Mas, ocasionalmente temos forte suspeita de que a objeção ao caráter direto e simples do Evangelho não é de natureza puramente intelectual, como querem que acreditemos. A verdadeira objeção encontra-se em outros motivos. Nada é mais conveniente e confortável do que o senso de que a religião é nebulosa e vaga. Enquanto ela for mantida nebulosa e indefinida, enquanto os seus seguidores puderem manter-se ocupados com diversas atividades, eles poderão persuadir-se de que tudo vai bem consigo. Não havendo definições claras e precisas, a religião não causa qualquer incômodo. Quanto mais complicada, tanto mais acomodadora e confortável ela se mostrará.

Nada existe de tão desconcertante como o Evangelho puro e direto, o qual, despido de vãs decorações e adornos e ignorando tudo quanto não é essencial e fingido, desmascara a alma e a desnuda, projetando sobre ela a luz de Deus. É bem mais fácil apreciar a cerimônia e o ritual, mergulhar em conceitos vagos e idealistas, com aparência de grande importância, e ocupar-se com ações filantrópicas – como essas coisas são muito mais gratificantes para a natureza humana – do que enfrentar as questões diretas e simples da Palavra de Deus! Os idealistas e humanistas, raramente, ou mesmo nunca, são perseguidos.

David Martyn Lloyd-Jones

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