A Responsabilidade do Homem e Sua Falta de Poder

A questão da responsabilidade do homem parece deixar perplexas a muitas almas. Estas consideram que é difícil – por não dizer impossível – conciliar este principio com o fato de que o homem carece por completo de poder. «Se o homem – arguirem – é absolutamente impotente, como pode ser responsável? Se ele por si mesmo não pode arrepender-se nem acreditar no Evangelho, como pode ser responsável? E se ele, finalmente, não é responsável por acreditar no Evangelho, sobre que base, então, poderá ser julgado por recusá-lo?».

Assim é como a mente humana raciocina e arguia; e a teologia, infelizmente, não ajuda a resolver a dificuldade, mas sim, pelo contrário, aumenta a confusão e a escuridão. Pois, por um lado, uma escola de teologia – a «alta» ou calvinista – ensina – e corretamente – a completa impotência ou incapacidade do homem; que o deixa liberado a seus próprios meios, ele jamais irá querer nem poderá vir a Deus; que isto só é possível graças ao poder do Espírito Santo; que se não fosse pela livre e soberana graça, nunca uma só alma poderia ser salva; que, se de nós dependesse, só obraríamos mau e nunca faríamos bem. De tudo isto, o calvinista deduz que o homem não é responsável. Seu ensino é correto, mas sua dedução é errônea. A outra escola de teologia – a «baixa» ou arminiana – ensina – e corretamente – que o homem é responsável; que será castigado com eterna destruição por ter recusado ao Evangelho; que Deus manda a todos os homens em todo lugar que se arrependam; que roga aos pecadores, a todos os homens, ao mundo, que se reconciliem com Ele; que Deus quer que todos os homens sejam salvos e venham ao conhecimento da verdade. De tudo isto, o sistema deduz que o homem tem o poder ou a faculdade de arrepender-se e acreditar. Seu ensino é correto; sua dedução, errônea.

Disto se segue que nem os raciocínios humanos nem os ensinos da mera teologia – alta ou baixa – poderão jamais resolver a questão da responsabilidade do homem e de sua falta de poder. A palavra de Deus somente pode fazê-lo; e o faz da maneira mais simples e concludente. Ela ensina, demonstra e ilustra, do começo de Gêneses até o final do Apocalipse, a completa impotência do homem para obrar o bem e sua incessante inclinação ao mal. A Escritura, em Gênese 6, declara que “todo intuito dos pensamentos do coração deles é de contínuo somente o mal”. Em Jeremias 17 declara que “enganoso é o coração mais que todas as coisas, e perverso”. Em Romanos 3 nos ensina que “não há justo, nem mesmo um; não há quem entenda. Não há quem procure Deus. Todos se desviaram, a uma se fizeram inúteis; não há quem faz o bem, não há nem sequer um”.

Além disso, a Escritura não só ensina a doutrina da absoluta e irremediável ruína do homem, de seu incorrigível mal, de sua total impotência para fazer o bem e de sua invariável inclinação ao mal, mas sim também nos provê de um amontoado de provas, absolutamente incontestáveis, na forma de fatos e ilustrações tirados da história atual do homem, que demonstram a doutrina. Mostra-nos ao homem no jardim, acreditando no diabo, desobedecendo a Deus e sendo expulso. Mostra-o, depois de ter sido expulso, seguindo seu caminho de maldade, até que Deus, finalmente, teve que enviar o dilúvio. Logo, na terra restaurada, o homem se embriaga e se degrada. É provado sem a lei, e resulta ser um rebelde sem lei. Então é provado sob a lei, e se converte em um transgressor premeditado. Então são enviados os profetas, e o homem os apedreja; João o Batista é enviado, e o homem o decapita; o Filho de Deus é enviado, e o homem o crucifica; o Espírito Santo é enviado, e o homem resiste.

Assim, em cada volume – por dizê-lo assim – da história do gênero humano, em cada seção, em cada página, em cada parágrafo, em cada linha, lemos a respeito de sua completa ruína, de seu total afastamento de Deus. Nos ensina, da maneira mais clara possível, que, se do homem dependesse, jamais poderia nem quereria – embora, certamente, deveria – voltar-se para Deus, e fazer obras dignas de arrependimento. E, em perfeita concordância com isto, aprendemos da parábola da grande janta que o Senhor referiu em Lucas 14, que nem tão sequer um dos convidados quis achar-se à mesa. Todos os que se sentaram à mesa, foram “forçados a entrar”. Nenhum só jamais teria assistido se tivesse sido liberado a sua própria decisão. A graça, a livre graça de Deus, deveu forçá-los a entrar; e assim o faz. Bendito seja para sempre o Deus de toda graça!

Mas, por outra parte, lado a lado com isto, e ensinado com igual força e claridade, está a solene e importante verdade da responsabilidade do homem. Na Criação, Deus se dirige ao homem como a um ser responsável, pois tal indubitavelmente o é. E além disso, sua responsabilidade, em cada caso, é medida por seus benefícios. Por isso, ao abrir a epístola aos Romanos, vemos que o gentil é considerado em uma condição sem lei, mas sendo responsável por emprestar ouvido o testemunho da Criação, o que não tem feito. O judeu é considerado como estando sob a lei, sendo responsável por guardá-la, o que não tem feito. Logo, no capítulo 11 da epístola, a cristandade é considerada como responsável por permanecer na bondade de Deus, o qual não fez. E em 2 Tessalonicenses 1 lemos que aqueles que não obedecem ao Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, serão castigados com eterna destruição. Por último, no capítulo 2 da epístola aos Hebreus, o apóstolo urge na consciência esta solene pergunta: “Como escaparemos nós, se descuidarmos uma salvação tão grande?”.

Agora bem, o gentio não será julgado sobre a mesma base que o judeu; tampouco o judeu será julgado sobre a mesma base que o cristão nominal. Deus tratará com cada qual sobre seu próprio terreno distintivo e conforme à luz e privilégios recebidos. Há quem receberá “muitos açoites”, e quem será “açoitado pouco”, conforme a Lucas 12. Será “mais passível” para uns que para outros, segundo Mateus 11. O Juiz de toda a terra terá que fazer o que é justo; mas o homem é responsável, e sua responsabilidade é medida pela luz e os benefícios que lhe foram dados. Não a todos os agrupa indiscriminadamente, como se eles se achassem em um terreno comum. Ao contrário, faz-se uma distinção da mais estrita, e ninguém será jamais condenado por menosprezar e recusar benefícios que não tenham estado a seu alcance. Mas certamente o só pelo fato de que haverá um julgamento, demonstra convincentemente – embora não houvesse nenhuma outra prova – que o homem é responsável.

E quem – perguntamos – é o protótipo de irresponsabilidade por excelência? Aquele que recusa ou despreza o Evangelho da graça de Deus. O Evangelho revela toda a plenitude da graça de Deus. Todos os recursos divinos se desdobram no Evangelho: O amor de Deus; a preciosa obra e a gloriosa Pessoa do Filho; o testemunho do Espírito Santo. Além disso, no Evangelho, Deus é visto no maravilhoso ministério da reconciliação, rogando aos pecadores que se reconciliem com Ele [1]. Nada pode ultrapassar isto. É o mais elevado e pleno desdobramento da graça, da misericórdia e do amor de Deus; portanto, todos os que o recusam ou menosprezam, são responsáveis no sentido mais estrito do termo, e trazem sobre si o mais severo julgamento de Deus. Aqueles que recusam o testemunho da Criação são culpados; os que quebrantam a lei são mais culpados ainda; mas aqueles que recusam a graça oferecida, são os mais culpados de todos.

Haverá alguém que ainda objete e diga que não é possível reconciliar as duas coisas: a impotência do homem e a responsabilidade do homem? O tal tenha em conta que não nos incumbe as reconciliar. Deus o tem feito ao incluir ambas as verdades uma ao lado da outra em sua eterna Palavra. Corresponde-nos nos sujeitar e acreditar, não raciocinar. Se atendermos às conclusões e deduções de nossas mentes, ou aos dogmas das antagônicas escolas de teologia, cairemos em um embrulho e estaremos sempre perplexos e confusos. Mas se simplesmente nos inclinamos ante as Escrituras, conheceremos a verdade. Os homens podem raciocinar e rebelar-se contra Deus; mas a questão é se o homem tem que julgar a Deus ou Deus tem que julgar ao homem. É Deus soberano ou não? Se o homem tiver que colocar-se como juiz de Deus, então Deus não é mais Deus. “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” (Romanos 9:20).

Esta é a questão fundamental. Podemos responder a ela? O fato claro é que esta dificuldade referente à questão de poder e responsabilidade é um completo engano que surge da ignorância de nossa verdadeira condição e de nossa falta de absoluta submissão a Deus. Toda alma que se acha em uma boa condição moral, reconhecerá livremente sua responsabilidade, sua culpa, sua completa impotência, seu merecimento do justo julgamento de Deus, e que se não fora pela soberana graça de Deus em Cristo, ela seria indevidamente condenada. Todos aqueles que não reconhecem isto, do profundo de sua alma, ignoram-se a si mesmos, e se colocam virtualmente em julgamento contra Deus. Tal é sua situação, se tivermos que ser ensinados pela Escritura.

Tomemos um exemplo. Um homem me deve certa soma de dinheiro; mas é um homem inconsciente e esbanjador, de modo que é incapaz de me pagar; e não só é incapaz, mas também tampouco tem o menor desejo de fazê-lo. Não quer me pagar; não quer ter nada que ver comigo. Se me visse vir pela rua, ocultar-se-ia logo que pudesse contanto que me esquivasse. É responsável? Tenho razões para iniciar ações legais contra ele? Acaso sua total incapacidade para me pagar o exonera de responsabilidade?Logo o envio a meu servo com uma afetuosa mensagem. Insulta-o. O envio outro; e o golpeia violentamente. Então o envio a meu próprio filho para que lhe rogue que venha para mim e se reconheça meu devedor, para que confesse e assuma seu próprio lugar, e para lhe dizer que não só quero perdoar sua dívida, mas também associá-lo a mim. Ele então insulta a meu filho de toda forma possível, joga toda sorte de opróbrio contra ele e, finalmente, o assassina.

Tudo isto constitui simplesmente uma muito débil ilustração da verdadeira condição de coisas entre Deus e o pecador; entretanto, alguns querem raciocinar e argumentar a respeito da injustiça de sustentar que o homem é responsável. Isso é um fatal engano, desde todo ponto de vista. No inferno não há uma só alma que tenha alguma dificuldade sobre este tema. E com toda segurança que no céu ninguém sente nenhuma dificuldade a respeito. Todos os que se achem no inferno reconhecerão que receberam o que mereciam conforme a suas obras; enquanto que aqueles que se achem no céu se reconhecerão «devedores à graça somente». Os primeiros terão que agradecer-se a si mesmos; os últimos terão que dar graças a Deus. Acreditam que tal é a única solução verdadeira à questão da responsabilidade e o poder do homem [2].

Charles Henry Mackintosh

[…]

[1] Nota do Autor – Alguns queriam nos ensinar que a expressão “Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus” (2 Coríntios 5:20) refere-se aos cristãos que são exortados a reconciliar-se com os caminhos de Deus. Que engano! Isso passa por cima completamente do claro sentido da passagem e seus termos atuais. Deus estava em Cristo, não reconciliando aos crentes com Seus caminhos, a não ser reconciliando ao mundo consigo. E agora a palavra da reconciliação é encomendada aos embaixadores de Cristo, quem tem de rogar aos pecadores que se reconciliem com Deus. A força e a beleza desta preciosa passagem são sacrificadas, a fim de sustentar certa escola de doutrina que não pode enfrentar o pleno ensino da Santa Escritura. Quanto melhor é abandonar toda escola e sistema de teologia, e vir como um menino ao infinito e insondável oceano da divina inspiração!

[2] «Responsibility and power», Things New and Old 17:57.

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