A Cruz e os Afetos da Alma

Aquele que não vem após mim, não é digno de mim. Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, achá-la-á” (Mt 10.38-39) – Esta passagem ocorre no encargo dado aos doze quando o Senhor os enviou em Seu Nome. Ele os avisa que “os inimigos do homem serão os seus familiares“, e mostra que em primeiro lugar segui-Lo no caminho da Cruz significará uma ‘espada’ na sua vida de sua família, quando as reivindicações de Cristo e da família não estão de acordo. A ‘espada’ para dividir o almático e o espiritual nos afetos geralmente vem em um choque entre a vontade conhecida de Deus e a vontade daqueles que amamos, a qual compele o crente para tomar a sua cruz, ir adiante até à crucificação, e seguir o Senhor, muito embora isso cause a divergência com o pai ou a mãe, ou com a sua própria casa. Foi assim mesmo com Cristo. Ele que tinha dito: “Honrai ao pai e a mãe“, teve que dizer: “Quem é a Minha mãe e os Meus irmãos?“. quando O julgaram estar “fora de Si“, quando estava ocupado com os negócios do Seu Pai. O tomar a Cruz desta forma, e escolher ser obediente a Cristo diante das reivindicações da família, significam para os afetos naturais tal sofrimento que é como uma espada que corta a alma, para que de fato a vida da alma nos afetos seja perdida, e o vaso purificado da alma no aspecto dos seus afetos, se torna aberta ao influxo do amor de Deus pelo Espírito, através do qual o crente ama os seus não mais para si mesmo, mas para Deus, e através de Deus. A vida mais baixa é trocada pela mais alta; a alma em sua personalidade e capacidade como recipiente permanece a mesma alma, mas agora dominada desde o espírito pelo Espírito de Cristo, o último Adão, e não pela vida carnal da alma do primeiro Adão (1 Cr 15:45-48).

No Evangelho de Lucas o efeito da espada da Cruz com relação aos afetos da alma é mais claramente definido, pois o Senhor usa a palavra “aborrece” e diz: “Se alguém vier a Mim, e não aborrecer o seu pai e mãe, e mulher e filhos, e irmãos e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser Meu discípulo” (Lc 14:26). Aqui novamente a palavra vida é ‘psuche’, nossa vida animal da alma. Mateus dá a provação da vontade na sua escolha de Deus ou daqueles que amamos primeiro, nas palavras “amar… mais do que a Mim”, mas Lucas registra a linguagem usada pelo Senhor que descreve a atitude do seguidor de Cristo para com a vida da alma em sua entranhada afeição, uma atitude que é necessária para a sua purificação. Tal crente deve ‘aborrecer’ a sua própria vida (psuche) em sua penetração nas relações familiares, para que possa ter a alma dividida do espírito nessa esfera, e ao ‘aborrecer’ e ‘perder’ a sua vida da alma, descobrir que o amor vivo mais elevado e mais puro de Cristo permeia os laços apertados da família, ordenados e honrados pelo próprio Deus através do Seu Filho na forma humana.

A Cruz e o Egoísmo Almático

“Porque aquele que quiser salvar a sua vida (alma) perdê-la-á, e quem perder a sua vida (alma) por amor de Mim, achá-la-á” (Mt 16.24-26). Mais adiante Mateus registra novamente uma afirmação semelhante do Senhor, mas desta vez atraída pelas palavras de Pedro a Ele com respeito à Sua própria Cruz. Pedro tinha dito: “Senhor, tem compaixão de Ti”, mas o Senhor responde que o caminho para segui-Lo significava ‘negar a si mesmo’. Aqui a vida da alma está resumida nas palavras ‘si mesmo’, quando mostrada na centralidade do ego em qualquer forma, a auto-piedade, o auto-interesse, o auto-resguardo do sofrimento, em resumo, tudo o que faria uma pessoa salvar a sua vida, ao invés de avançar na força divina para esvaziar a sua alma até morrer por outros. Escolher o caminho da Cruz por causa de Cristo significa a perda da vida da alma carnal, para ter a vida divina pura de Cristo em sua capacidade de sacrifício suprido e derramado pelo vaso da alma para abençoar o mundo. Marcos repete novamente as palavras como dadas no Evangelho de Mateus (Mc 8:34-36), e Lucas faz o mesmo com a adição das palavras ‘cada dia’, mostrando que a Cruz com relação ao derramamento e sacrifício da vida da alma tem que ser uma escolha diária, e é um aspecto da Cruz distintamente diferente daquele dado em Romanos 6, e o das outras Epístolas, onde a morte da ‘velha criação’ deve ser compreendida como um fato concluído, tornado verdadeiro quando o crente “considera” a si mesmo “morto para o pecado”, e “vivo para Deus em Cristo Jesus”.

A Cruz e o Vislumbre Almático das Coisas Terrenas

“Lembrai-vos da mulher de Ló. Qualquer que procurar salvar a sua vida (alma) perdê-la-á e qualquer que a perder, salvá-la-á” (Lc 17.32-33). Aqui encontramos novamente as mesmas palavras enfáticas repetidas pelo Senhor com relação ao egoísmo e ao instinto natural da autopreservação e vislumbre próprio das possessões terrestres. “Lembrai-vos da mulher de Ló”, diz o Senhor Jesus, quando aponta para a tendência natural da vida da alma, de voltar atrás na hora do perigo para salvar os bens e não os deixar ir. A lei para ganhar a vida mais alta do espírito é ‘perder’ para que se ‘ganhar’.Avida almática busca tesouros terrestres, mas esses devem ser renunciados, e a “divisão da alma do espírito” em conexão a isso acontecerá novamente pela atitude do crente quando nas circunstâncias da vida chega a provação. Essa atitude para apoderar-se é algumas vezes uma maior manifestação da graça divina do que o sacrifício da vida. A renúncia da vida da alma em seu inato apego às coisas da terra é uma necessidade para se ganhar a vida do Espírito de Cristo, a qual derramando no vaso da alma desde o espírito, como o assento da consciência de Deus, traz com ela tal segurança da abundância em Deus para que os tesouros da terra sejam possuídos trivialmente, e sejam facilmente renunciados em tempos de provação que vêm a todos. A atenção excessiva dos filhos de Deus pelo lar e pelos bens, negligenciando o Reino de Deus, é manifestamente um aspecto da alma, e não da vida do espírito, e esse apego, ou super-ocupação com os assuntos necessários da terra, precisa da obra da faca do Grande Sumo Sacerdote na divisão da alma do espírito, para que as afeições dos Seus comprados pelo sangue possam ser colocadas nas coisas do alto, para o cumprimento da palavra: (Cl 3.1-4).

A Cruz e o Amor-Próprio Almático

“Quem ama a sua vida (alma) perdê-la-á, e quem neste mundo aborrece a sua vida (‘psuche’, vida da alma), guardá-la-á para a vida (‘zoe’, a vida mais alta) eterna” (Jo 12.25). Aqui temos o contraste entre a vida da alma e a vida mais alta do espírito manifestada em e pela personalidade da alma muito claramente definida. A vida da alma é agora mostrada como resumida em amor próprio, quem “ama a sua alma”, o que simplesmente significa a si mesmo. Vimos que a vida da alma penetra nas afeições de família, e a manifestamos em piedade de si mesmo, autoproteção, alcance próprio dos bens da terra; num breve resumo em ‘Minha família, Eu mesmo, meus bens’; com amor-próprio em tudo e por todos. Tudo isso, diz o Mestre, significa perda, perda eterna, pois tudo isso vem da vida derivada do primeiro Adão, manifestada pela personalidade da alma, e impede que essa alma seja dominada pelo espírito e dê expressão à pura vida divina do Último Adão, o Senhor do céu.

O Caminho da Libertação

“O amor de Cristo nos constrange, julgando assim que se Um morreu para todos, logo todos morreram, e Ele morreu para os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2 Cor 5.14-15). A obra de divisão de alma e espírito é feita pelo próprio Senhor, através do Seu Espírito manejando a Palavra de Deus, como uma viva e ativa espada, que penetra nos recessos mais íntimos do ser imaterial de uma pessoa. O Espírito de Deus não pode executar a Sua obra sem o nosso consentimento e cooperação. Resumindo brevemente, as condições de cooperação do nosso lado são como se segue:

  1. Temos de ver a necessidade da divisão da alma e do espírito, e assim como o sacrifício é posto no altar, definitivamente consentir na obra que está sendo feita.
  2. A nossa vontade deve ser firmemente colocada do lado de Deus na obra experimental que opera a divisão conforme as circunstâncias da vida a requerem.
  3. A base da Cruz como mostrada em Romanos 6.1-14 deve ser firmemente mantida. Como nos reconhecemos “mortos para o pecado” (Rm 6.11), e ativamente levamos a cabo o mandamento de não deixar “reinar o pecado” em nosso corpo mortal, tendo assim a carne crucificada com suas “paixões e concupiscências” (Gl 5.24), assim devemos nós agora nos reconhecer mortos de fato para o pecado em suas formas mais sutis através da vida da alma, as más condições do ego, tais como o amor próprio desordenado, a piedade de si mesmo,etc.
  4. Quando cumprimos essas condições devemos levar a cabo agora na prática o nosso propósito e fé, e firmemente ser fiel a tudo que nos é mostrado pelo Espírito de Deus, recusando deliberadamente toda a intrusão da vida de alma, e escolhendo nos abrir à vida mais alta de Cristo em osso espírito.
  5. Devemos buscar em todas as coisas andar segundo o espírito, discernindo o que é do espírito e o que é da alma, para assim seguir o primeiro, e recusar o outro; para entender as leis do espírito para andar nelas, e se tornar na verdade uma pessoa espiritual.

Quando cumprimos essas condições nos tornamos de fato uma nova pessoa, pois o poder da Cruz assim como a espada do Espírito manejada pelas mãos do Sumo Sacerdote celestial, penetra até a divisão da alma e do espírito. Ela rastreou a vida da alma até as juntas e medulas, aos recessos interiores da alma na fonte da sua atividade, e mesmo a ‘medula’ das suas afeições. Sim, ela discerniu até a vida almática na mente, nos sentimentos, e nas próprias concepções dos poderes mentais. Agora nós mais e mais alegre e facilmente andamos segundo a Palavra escrita, e tomamos a Cruz quando trazida para a carregarmos diariamente pela providência do Deus. Compreendendo sempre com a mais clara visão o fato da nossa morte com Cristo na Cruz, o espírito é cada vez mais dividido da alma e unido em união essencial com o Senhor ascendido que é um Espírito Vivificante, para que nos tornemos “um espírito” com Ele, e o nosso espírito humano um canal do fluir do Espírito de Cristo para um mundo necessitado.

Jessie Penn-Lewis

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